«O povo que fala pela voz de Aquilino Ribeiro é a única expressão válida de um país que continua a existir sob o chicote do invasor, que outro nome não merece o bando de aventureiros que implantou em Portugal o reinado do terror, dando-se como representante das virtudes que nunca praticou para 'salvar' Portugal de males de que nunca sofreu»
Adolfo Casais Monteiro no prefácio de «Quando os lobos julgam a Justiça uiva», publicado em São Paulo, Brasil, e que contém o texto integral da acusação e defesa no Processo de Aquilino Ribeiro pela publicação de «Quando os lobos uivam»
Ainda há Questões em Portugal. Grandes Questões. A discussão em torno da importância dos baldios no nosso país é ainda uma questão que o Estado Novo tentou apagar e que a Democracia, com o seu centralismo indiferente à realidade praeter Lisboa, pura e simplesmente ignorou e votou ao esquecimento.
É minha profunda convicção que o Estado, enquanto autoridade e corpo institucional de exercício de poder, só chega à interioridade rural portuguesa muito tardiamente, talvez mesmo apenas com o Estado Novo, já que até aí assistiamos a regimes (sobretudo no Minho interior, Trás-os-Montes e nas Beiras) comunitários regidos pelo chamado direito das gentes, muitas vezes profundamente democráticos e participativos. Assim, a existência de ditos populares como 'para lá do Marão mandam os que lá estão' não reflecte senão um sistema de organização autónomo de uma autarcia extrema. Isto acontecia não apenas porque o caminho fazia-se longo desde Lisboa mas também, e sobretudo, porque pura e simplesmente, a ligação das pessoas à terra e o seu sentimento de pertença à comunidade próxima ultrapassava largamente qualquer sentimento de 'portugalidade' que nenhum Portugal dos Pequeninos vergaria, à excepção de algumas elites citadinas que olhavam para o modo de vida de um habitante de Tourém com a mesma curiosidade que os primeiros naturalistas franceses olhavam para os índios pataxó: uma curiosidade museológica. Ainda é muitas vezes assim, embora o Estado Novo e a Democracia tenham efectivamente, para o bem e para o mal, conseguido destruir muitas das salutares diferenças entre um minhoto de Castro Laboreiro e um algarvio de Tavira.
As estradas são exercícios de demonstração pura de poder e autoridade. Quando é Lisboa que decide a construcção de uma estrada que liga Braga a Chaves o que o Lisboa está a fazer é a querer transportar-se para Chaves e, a partir de Chaves, para as aldeias e povoações circundantes. É inegável que foi isso que levou também a saúde, a educação e aquilo que acredito ser uma Justiça equilibrada e válida que, com os seus defeitos, vai garantindo o cumprimento de concepções moralmente aceitáveis de Justiça. Não pode ser considerado uma colonização porque o panorama é nacional e cabe ao Estado cumprir com o seu dever. Acaba aqui. O Estado colonizou quando avançou com o plano nacional de barragens e afogou dezenas de localidades expropriando, destruindo e perseguindo quem se opunha à chamada 'modernização do país'. É uma história que está por escrever. Vilarinho das Furnas tem a sua escrita pela mão de Jorge Dias num livro profundamente essencial para a compreensão não só do modo de vida das aldeias comunitárias em Portugal mas o que representou a sua destruição (Vilarinho das Furnas, uma aldeia comunitária, Jorge Dias, 1984, INCM).
«Quando os lobos uivam» retrata a história da expropriação dos terrenos baldios na Serra dos Milhafres, nas Beiras, e dos processos e caçadas ao homem que o Estado moveu contra todos aqueles que ousaram pronunciar-se contra o roubo e o esbulho do que já era, verdadeiramente, de todos. Mas o esbulho continua em democracia. Vilar da Veiga, antiga e muito rica aldeia comunitária de Terras de Bouro, sofreu duplamente. Primeiro, a partir de 1946 com o Decreto-Lei que regulava a arborização nacional, inicia-se o processo de expropriação dos terrenos baldios e os confrontos entre a população e os recém criados Serviços Florestais com a Guarda Nacional Republicana a ajudar na coronhada. Depois, em 1955, com a construcção da barragem da Caniçada e consequente desaparecimento da antiquíssima aldeia, as suas pontes, o seu casario granítico, uma das maiores veigas de Entre Douro e Minho e o belo ponto de junção do Rio Gerês com o Rio Cávado. Hoje o lugar é lindo com o seu lençol de água, mas antes era ainda mais. As pessoas foram assim arrastadas para as margens da albufeira e recomeçaram a sua vida como o Estado ordenou. Hoje em dia continuam a existir baldios, mas uma fatia muito grande do que representa o rendimento que os compartes retiram dos baldios é obrigatoriamente entregue a Lisboa, ao Instituto de Conservação de Natureza, isto por estarem os terrenos baldios localizados em pleno Parque Nacional da Peneda-Gerês. É roubo e esbulho.
Hoje em dia as nossas serras ainda têm lobos, mas menos, muito menos. Durante largas dezenas de anos organizaram-se caçadas em Lisboa aos lobos das nossas terras. No fim do Século XIX, em Covide, Terras de Bouro, uma Viscondessa de Lisboa financiou a construcção de um fojo para lobos. A contrapartida: as peles de todos os animais mortos. A nossa pele.