Havia uma casa abandonada nos arredores de P. Uma casa grande, apalaçada, de inícios do Século XX. Os espaços abandonados exalam um qualquer odor de chamamento que nos leva a saltar muros e, por vezes, a forçar janelas. Acontece que as portadas da cozinha, no rés-do-chão das traseiras, encontravam-se abertas, e os vidros partidos permitiram-me abrir a janela sem causar estertor em volta. Apenas os melros que circundavam haviam levantado voo com a minha chegada. No interior, uma casa grande de estuques ricamente trabalhados mas perfeitamente abandonada, vazia, velha e desinteressante. Só no primeiro andar, numa divisão com vitrais a deitar cores bruxuleantes pelas estantes, livros e livros esperavam a minha chegada. Os herdeiros, ricos economistas e consultores da capital, lá longe, haviam feito a selecção do que eles eloquentemente apelidaram de bens fungíveis, esquecendo-se propriamente dos únicos objectos que sendo valorizáveis não tem preço. A propriedade há-de ser sempre o roubo. Menos quando é resgate. Quando aqueles homens britânicos caminhavam entre os escombros e destroços da biblioteca da Holland House de Londres depois dos bombardeamentos alemães, o que eles verdadeiramente faziam era continuar a civilização depois da barbárie. Todo o tempo tem o seu modo. Neste, que é o nosso, a caridade não é o caminho, antes o resgate. O resgate pelo único princípio de que a cultura e, com ela, a literatura, sempre terão quem as livre do fogo. Agora sim, a casa está vazia. Agora sim, a casa pode ruir.
*Publicado na revista Ler deste mês de Fevereiro de 2013