Mesmo os espíritos menos atentos à música coral, não ficam indiferentes ao despertar e à estranha força harmoniosa de uma multidão de vozes, da obra heróica «Acordai!», de Fernando Lopes Graça, escrita por José Gomes Ferreira.
“Acordai
acordai
homens que dormis
a embalar a dor
dos silêncios vis
vinde no clamor
das almas viris
arrancar a flor
que dorme na raíz
Acordai
acordai
raios e tufões
que dormis no ar
e nas multidões
vinde incendiar
de astros e canções
as pedras do mar
o mundo e os corações
Acordai
acendei
de almas e de sóis
este mar sem cais
nem luz de faróis
e acordai depois
das lutas finais
os nossos heróis
que dormem nos covais
Acordai!”
A subversão é a arma dos insubmissos, a palavra e voz dos inconformados, e o medo dos poderosos e dos que se sentem perigar entre a Democracia. Acordai!
"A revolução chama Pedro Bala como Deus chamava Pirulito nas noites do trapiche. É uma voz poderosa dentro dele, poderosa como a voz do mar, como a voz do vento, tão poderosa como uma voz sem comparação. Como a voz de um negro que canta num saveiro o samba que Boa-Vida fez:
Companheiros, chegou a hora...
A voz chama. Uma voz que o alegra, que faz bater seu coração. Ajudar a mudar o destino de todos os pobres.Uma voz que atravessa a cidade(...) Uma voz que vem com o ruído dos bondes onde vão os condutores e motorneiros grevistas(...) Uma voz que vem do cais, do peito dos estivadores, de seu pai morrendo num comício, dos marinheiros dos navios, dos saveiristas e dos canoeiros(...) Uma voz que vem de todos os pobres, do peito de todos os pobres. Uma voz que diz uma palavra bonita de solidariedade, de amizade: companheiros. Uma voz que convida para a festa da luta(...) Voz poderosa como nenhuma outra. Porque é uma voz que chama para lutar por todos, pelo destino de todos, sem excepção. Voz poderosa como nenhuma outra. Voz que atravessa a cidade e vem de todos os lados. Voz que traz com ela uma festa, que faz inverno acabar lá fora e ser a primavera. A primavera da luta(...) Voz que vem de todos os peitos esfomeados da cidade, de todos os peitos explorados da cidade. Voz que traz o bem maior do mundo, bem que é igual ao sol, mesmo maior que o sol: a liberdade(...) Voz poderosa que o chama. Voz de toda a cidade pobre, voz da liberdade. A revolução chama Pedro Bala."
* Jorge Amado in "Capitães da Areia".
Começo com uma declaração de interesses: não sou chavista. Aliás, tenho pudor em cingir a minha ideologia socialista a uma personalidade política, ainda que o meu imaginário seja preenchido pelo exemplo ético e corajoso de Salvador Allende. Também não sou ingénuo e sei, até pela obra “Mãos Sujas” de Jean-Paul Sartre, que o pragmatismo político por vezes nos impede de almejar o céu sem sujar os pés. Esta contingência obriga-nos a uma análise fria do plano político e sua contextualização no espaço e no tempo. É neste âmbito que gostaria de abordar o regime bolivariano.
No dia 7 de Outubro teremos mais um episódio eleitoral na Venezuela. Utilizando a dicotomia esquerda/direita, teremos frente-a-frente Hugo Chávez e Capriles Radonski, respectivamente. Mais uma vez os venezuelanos serão chamados às urnas para depositarem o seu voto e optarem entre a continuidade do projecto sócio-económico iniciado há pouco mais de um decénio ou o seu término, pelo menos nos moldes actuais. É importante ressalvar que apesar do desprezo a que tem sido confinado o actual Presidente pelos media ocidentais, a sua reeleição parece ser o cenário mais plausível tendo em conta as sondagens. O motivo? Bem-vindos à República Bolivariana.
Em primeiro lugar, gostaria de esclarecer que não subscrevo um certo centralismo político patente na Constituição Bolivariana, fruto da minha ética republicana. Refiro-me aos mandatos de 6 anos que considero excessivos e à possibilidade de reeleição sucessiva sem limitação de mandatos, assim como a excessiva personalização do regime em torno de Hugo Chávez ou a Lei Habilitantes que possibilita ao Executivo governar por decreto em áreas nevrálgicas sem passar pelo Congresso. Todavia não sou imune à evolução civilizacional a que temos assistido na pátria de Bolívar.
Graças à nova Lei Máxima, foram constitucionalmente protegidos direitos políticos, sociais e económicos de extrema importância: progresso no reconhecimento de direitos das comunidades indígenas, a garantia de educação, saúde e pensão, a redução da jornada laboral de trabalho ou a apropriação de sectores estratégicos por parte do Estado.
Todas estas normas foram consubstanciadas em planos de desenvolvimento como o Programa Económico de Transição 1999/2000 e o Plano de Desenvolvimento Económico e Social da Nação 2001/ 2007. Através da Lei dos Hidrocarbonetos que possibilitava ao Estado controlar a riqueza do seu país, mormente os recursos petrolíferos através da PDVSA, foram avançadas várias medidas de protecção da dignidade humana como as Missões Sociais financiadas pelo Fundo para o Desenvolvimento Económico e Social do País (FONDESPA) que promoveram passos gigantescos no combate à exclusão social e na construção de sectores universais e gratuitos em áreas como a saúde e educação. Neste momento, a estratégia económica visa diversificar o tecido produtivo do país com o patrocínio do Estado. Os resultados são bens visíveis e traduzem um novo tecido social. De 1999 (Hugo Chávez tomou posse a 2 de Fevereiro de 1999) a 2011, e só para citar alguns, o índice de desenvolvimento humano (IDH) cresceu de 0,7835 para 0,8261; a população a viver na pobreza extrema diminuiu de 16,6% para 7% e a taxa de desemprego baixou da casa dos 14% para 7%. Pelo caminho todos os indicadores a nivel de saúde e educação denotaram uma melhoria significativa.
A estes dados é necessário acrescentar os obstáculos que surgiram no caminho da Venezuela como a instabilidade dos preços relativos ao sector petrolífero, a inflação, a greve de vários funcionários da PDVSA e o Golpe de Estado, para não referir a Crise de 2008.
Em relação a Capriles Radonski, independentemente das suas boas intenções, os factos falam por si. Está associado ao Golpe de Estado de 2002 patrocinado por Pedro Carmona, empresário e presidente da FEDECÁMARAS, uma associação patronal poderosa com uma agenda clara de interesses privados, e pelos órgãos de comunicação social privados com o apoio dos Estados Unidos da América, que tentou derrubar o Governo de Hugo Chávez. Enquanto alcalde do munícipio de Baruta liderou e permitiu o cerco à embaixada cubana por apoiantes do golpe, numa tentativa que transgredia a Convenção de Viena.
Neste sentido, se em terras do Uncle Sam está em jogo a eleição do Presidente com mais consciência social no plano do liberalismo económico, já na Venezuela a vontade popular oscilará entre o actual modelo social e a antiga Venezuela, um país de contrastes e assimetrias. Eu não sou chavista mas sei bem em quem votaria.
«Há limites para os sacrifícios e nem tudo é legítimo» disse paradoxal e cinicamente o Primeiro-Ministro, Pedro Passos Coelho, em entrevista à RTP, no dia 13 de Setembro último, depois de duas tenebrosas comunicações do Governo ao país. Nos discursos e entrevista, mais austeridade e mais pesada, além da perversa alteração de todo o consenso social, com a implementação da TSU. Justificação de Pedro Passos Coelho: os portugueses não consumiram como deveriam… Indecoroso. O Governo exigiu sacrifícios, o povo correspondeu, o primeiro alienado que está foi incapaz de cumprir.
A resposta foi dada na rua, apenas dois dias volvidos, e a adesão superou as convocatórias das redes sociais. O povo sábio quis marcar presença e impôs ser ouvido (e não, não foi aquela massa amorfa, que alguns opinadores vêem e outros receiam). A mensagem foi colectiva e no final de todo o processo, o Governo saiu deslegitimado. Recuou.
Por essa Europa fora, e onde os Governos aplicam a única receita que aparentemente conhecem, os povos (e as economias) em «fadiga» e no limite da asfixia saem à rua, opondo-se à austeridade excessiva, pondo em causa a legitimidade desses mesmos Governos. Vejam-se as recentes declarações de Mariano Rajoy, e a margem de manobra que sabe que não tem, apelando inseguro, aos que ainda não saíram à rua; acenando nervoso, a Merkel, por outra solução.
Têm os povos legitimidade para se opor e resistir? Têm. Há outras soluções? Evidentemente. Ademais, bem menos custosas, no que às condições sociais e humanas diz respeito, e realmente interessam.
Os tempos devem ter mudado muito, para que um segurança pessoal do primeiro-ministro tenha agido, dentro de uma faculdade, como agente de autoridade, obrigadando a polícia de segurança pública a identificar um aluno que se exprimiu livremente no único lugar do país onde nem sempre a autoridade do Estado se exercia, virtude da autonomia histórica das Universidades na Europa.
Os tempos devem ter mudado mesmo muito para que esta nova 'polícia' sem corpo legal, agindo em nome próprio, irrompa dentro de uma faculdade contra tudo o que transpira liberdade: um jovem descontente e com dúvidas, um jornalista trabalhando. O ISCSP que tem uma bela história de resistência com o Professor Adriano Moreira ao lado dos alunos ainda antes do 25 de Abril, viu-se hoje manchado por uma direcção acobardada e subserviente ao poder político, mesmo que este seja o responsável directo pela decadência da Universidade Portuguesa em geral e pela desonra do ISCSP em particular.
Um jovem em fúria, mesmo sozinho, podendo provocar muito dano, pode facilmente ser controlado. Já uma Juventude em Marcha...
Ao Fernando Valle, o Aristocrata da Esquerda:
Este é tempo de sim
Tempo de cada um por si e para si
Carreira ordem unida orelha murcha
Vida vidinha medo miudinho
Tempo de chefe e chefezinho
Este é tempo outra vez de Portugal em inho
Eis senão quando vem Fernando Valle
Com seu cabelo branco e seu sorriso
Traz consigo a velha trilogia
Liberdade (diz ele) E há nos seus olhos
Uma bandeira a conduzir o povo
Igualdade (diz ele) E chegam guerrilheiros
Com suas armas e sua festa
Garrett desembarca no Mindelo
Antero fala nas Conferências do Casino
Tocam sinos
E chegam carbonários
Sonhadores
A Rotunda o Relvas a República
Fraternidade (diz) E aí estamos nós
De novo de mão na mão
Prontos para o combate
E para o não
Ouviremos o Torga
Seremos contra isto para ser por isto
Resistir é possível
Pela esperança lúcida
É possível começar de novo
Porque ainda há Fernando Valle
Algures em Coimbra ou Arganil
Há ainda um velho capitão do povo
Com ele é sempre Portugal
E é sempre Abril.
*Poema de Manuel Alegre.
Não nos enganemos, vivemos uma patologia internacional e sistémica que nos oprime em nome de uma agenda política, económica e financeira bem definida. Os regimes apresentam-se frágeis e titubeantes, os pilares da res publica foram derrubados e somos governados de acordo com a força das circunstâncias. Vivesse hoje Rousseau e considerava que nem o voto nos torna verdadeiramente livres por um dia. O sonho de Monnet virou um pesadelo e Miguel de Vasconcelos hoje estaria orgulhoso dos governantes que o cumprem em cada país. Quem votou em Passos Coelho, votou em Selassie e condenou este país ao subterfúgio do memorando. Mas de que falo eu? Tão somente da cosmopolis. Não a dos concorrentes e clientes mas a do pilar da solidariedade, a do domínio público consubstanciado numa esfera pública. A democracia de iguais idealizada por Arendt. Falo da legitimidade popular adormecida por um discurso de Gaspar e do branqueamento das raízes da crise. A crise é internacional, porra.
A multidão saiu à rua. Ninguém está muito convencido de que viveu acima das suas possibilidades num país com um número taxativo de pessoas a viver abaixo do limiar da pobreza. Acusar os portugueses da dívida privada que se sobrepõe à dívida pública é como alegar que o subprime não se deveu ao casino das intituições financeiras. Esse discurso está gasto e se os nossos bancos fossem sólidos como advogavam não teriam necessitado da recapitalização do Estado nem de comprar os títulos de obrigações da dívida portuguesa a juros elevados quando são financiados a 1% pelo BCE. Muitos, excepto os fanáticos troikistas, também não compreendem a razão que leva a que o sistema financeiro internacional pouco tenha mudado após a última grande crise e nenhum quadro da Goldman Sachs ou da Merrill Lynch esteja neste momento a almoçar na cadeia. E de como a primeira referida ainda conseguiu estender os seus tentáculos a governos europeus. E as agências de rating? Aquelas que dotavam os CDO’s tóxicos de triplo A e agora nos transportam num saco de lixo? E a crise das dívidas soberanas não foi alimentada por bancos europeus que agora nos chamam de PIGS? Ouço a palavra «responsabilidade» de um modo banalizado, quando nenhum dos agentes citados foi chamado a depor e ainda lucram com as reformas e salários dos países soterrados em números iníquos que pouco foram investigados. Há quem tenha a lata ainda de argumentar que Portugal tem de agradar os mercados. E eu que pensava que era a classe política que tinha de administrar bem a pólis para agradar os cidadãos. Imaginei que a concepção de poder democrático era ascendente e não descendente. Que o contrato social determinava que o Estado servia a comunidade e não deuses pagãos que necessitam de sacríficios para serem alimentados.
A crise não é abstracta. Tem nomes e responsáveis. As suas vítimas também, independentemente da sua nacionalidade. O inimigo é transnacional e por isso a oposição também terá de se configurar desse modo. Só temos duas vias de lidar com o contexto capitalista actual numa dialéctica aberta: ou assumimos o nosso compromisso na história de mudarmos o paradigma; ou refugiamo-nos na técnica, na rotina e na mediocridade. Precisamos dos outros para sermos livres e por isso assumo a minha identidade como português, espanhol, irlandês e grego entre tantos outros povos explorados. A luta é internacional, porra.
Os governos representativos das forças da finança mundial começam a temer o ar que se respira na rua. Entre 15 de Setembro e hoje, dia 25, mobilizaram-se milhões de cidadãos em toda a Península Ibérica no combate às medidas impostas que, nos diferentes países, têm na sua base o mesmo predicado: o endividamento público. A incompreensão da origem da dívida legitima a acção reaccionária dos cidadãos perante os esforços que a todos são exigidos. Porque não explicam os governos qual a origem da nossa dívida? No final do processo, teremos pago mais impostos para descapitalizar os Estados? Teremos pago mais impostos para menos serviços públicos de saúde e educação? As soluções de regulação encontradas serão adoptadas depois de tudo se privatizar? Ao que parece, sim! Estamos perante o climax das políticas de alienação e esvaziamento quer das estruturas dos estados, quer do poder de autodeterminação de quem deles necessita. É urgente uma auditoria à nossa dívida.
Enquanto que em Inglaterra o líder da bancada dos conservadores chama 'plebeu de merda' a um polícia que faz o seu trabalho, nos Estados Unidos, o candidato republicano chama 'chupistas' a 47% dos norte-americanos dias antes de questionar-se sobre o motivo pelo qual não é possível abrir as janelas dos aviões. Em Portugal, descobrimos, através do Ministro Miguel Macedo, que somos um pais de cigarras, embora seja do executivo governamental que venha o som estridente de medidas de austeridade absurdas e incompreensíveis, vazias de uma visão social hodierna ou que se componham sequer num caminho organizado para o futuro do país.
O desprezo arrogante com que nós, cidadãos, somos diariamente tratados pela direita redunda num único e claro significado: somos vistos, pelos governantes, como aquilo que verdadeiramente somos: uns pobres coitados incapazes de entender que apenas temos a perder, libertando-nos, as nossas cadeias. O Mundo há-de sempre tremer ante o espectro de um povo esclarecido. A nova direita (saudosos os tempos em que homens como Raymond Aron ou Isaiha Berlin elevavam a direita àquilo que ela poderia ser) despreza tudo o que não é igual a si e que não se rege pelos mesmos princípios. Nada haveria a lamentar se esse desprezo tivesse um fundo ideológico e intelectual, mas não, entramos tão e somente só na época do grunhido e do apupo porco.
"Para um republicano, o indivíduo é à partida identificado com o cidadão-membro da comunidade e só existe enquanto parte integrante desse Todo e enquanto alguém que naturalmente se junta aos outros na busca do bem comum. A dimensão comunitária é constitutiva da própria identidade individual. Não há, por isso, verdadeira República nem verdadeira moral republicana que não enfatize uma concepção de cidadania fortemente participativa, sem que tal seja visto como uma ameaça às liberdades individuais(...) Como igualmente não pode haver República sem uma forte noção da importância do Estado como promotor do interesse público(...) A concepção republicana do Estado e dos seus poderes não contraria apenas a concepção liberal. Entra também em choque com a lógica maquiavélica do poder pelo poder. Porque o poder republicano é sempre entendido como um serviço público, ou seja, como um poder que serve outros fins que não o da simples conservação do seu exercício."
Ao cuidado do nosso Governo.
* "A República ontem e hoje", III Curso Livre de História Contemporânea, Fundação Mário Soares e Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, coordenação científica de António Reis.