Em 2006 Sofia Cappola estreia nos cinemas de todo o mundo o filme “Marie Antoinette”, que conta a história de vida da rainha consorte de França, no reinado de seu marido Luís XVI, séc. XVIII, e dos tempos de exuberância e luxúria, contrastante com os mesmos tempos de fome e miséria, num período marcante e excepcional da história francesa.
Antes do filme, Maria Antonieta, fica na história como ícone da cultura popular, no filme, surge como personagem humana, contendo em si muitos dos paradoxos da vida do nosso século.
A história é feita de muitas, pequenas ou grandes e variadas histórias, e na passada sexta-feira, dia de Conselho de Estado e manifestação, lembrei-me de uma. Conta essa história que o povo exausto de tantos impostos e taxas, com fome e vivendo na miséria não aguentava mais e rumou ao Palácio de Versalhes, sumptuoso e esmagador em beleza. Munidos de archotes, foices e forquilhas, o povo manifestou o seu descontentamento gritando palavras de ordem e forçando a entrada no palácio. No seu interior encontrava-se a corte, entre barões, viscondes, condes, marqueses e duques, o rei e a rainha, Maria Antonieta. Esta intrigada com o ruído ensurdecedor do povo no exterior, pergunta às suas damas de companhia:
- Por que razão gritam os meus súbditos? O que quer o povo?
Com o devido distanciamento físico, de entendimento e da posição que separa uma rainha dos seus humildes servidores, as damas de companhia respondem:
- O povo diz que tem fome, Sua Majestade.
Após breves segundos de reflexão, Sua Majestade, a Rainha de França e Navarra, Arquiduquesa da Áustria, filha dos imperadores do Sacro Império Romano-Germânico, Maria Antonieta de Habsburgo-Lorena, debaixo de tal autoridade sanguínea, determina solenemente, no substrato da sua vivência:
- Dêem-lhes brioches! Dêem-lhes brioches!
«Indignai-vos!», disse Stéphane Hessel, voz da resistência francesa ao nazismo, especialmente aos jovens franceses, que encontram pela frente motivos que fortalecem o sentimento de indignação, de resistência e inconformismo. Indignados, foi o que surgiram, não só em França, mas um pouco por todo o mundo, e tambémem Portugal. No passado sábado estiveram um milhão de portugueses estimados na rua, entre jovens, seus pais e avós, todos os quadrantes políticos, classes e extractos sociais, numa manifestação que muitos comparam com as concentrações ocorridas após a Revolução de Abril. Um milhão de vontades com uma palavra de ordem: Basta!
«Somos responsáveis enquanto indivíduos» disse Sartre em mensagem libertária, e a ordem foi clara. Há limites para os sacrifícios e nem tudo é legítimo. Passado mais de um ano de Governo as promessas tornaram-se vãs, o Governo que se apresentou rigoroso e exigente demonstra-se hoje incompetente e incapaz de controlar o deficit, tarefa na qual os portugueses se empenharam. Insensível à realidade o Governo partido, de um incompetente mais um demagogo, diz que segue em frente, com um fim, mas sem estratégia, e em falência moral, querendo retirar rendimentos do trabalho do trabalhador, para entregar aos patrões.
Na sua cruzada ideológica, da qual começaram as primeiras deserções, o Governo entra pelo perigoso caminho da condução deliberada do país à fragilização social e à miséria, contra um consenso social singular, do qual é o único ausente. Até os sectores mais partidariamente insuspeitos recusam o modelo social que nos querem impor, e bem. Mesmo tendo em conta possíveis “modelações”, que mais não são que discursos ocos, e aprofundam o sistema apelidado de inevitável a que estamos presos, a resposta deverá ser a rejeição.
Todos somos responsáveis, individual e colectivamente, pela construção da sociedade em que vivemos e do seu futuro. «Empenhai-vos!» Empenhamo-nos!
Obriga, o respeito pelas Instituições Republicanas, que os cidadãos cerquem uma Assembleia da República democraticamente eleita apenas para a proteger dos seus inimigos. Continuo a ver mais democratas silenciosos na manifestação em Lisboa do que revolucionários sem causa.
Obriga, sobretudo, o respeito pelas Instituições Republicanas que, quem se ocupar delas directamente, as trate com a dedicação e a estima necessárias e pedidas a quem administra o que é de todos.
Obriga, em última análise, a prática republicana, a constituição de uma lista de proscritos.
É sabido que todas as revoluções são inconstitucionais à luz da Constituição precedente. É que a Lei máxima de uma Nação fecha-se hermeticamente não tornando possível, no quadro da legalidade (democrática ou não) positivisita, aprovar uma nova Constituição. O poder constituido, o do actual governo, não se confunde portanto com o poder constituinte. O primeiro emana do segundo, que se encontra, no nosso caso, localizado na Assembleia Constituinte de 1975 que redigiu a Constituição actualmente em vigor desde 1976. Os atropelos, no nosso país, à CRP foram muitos e variados ao longos das últimas décadas, sobretudo no que concerne ao mecanismo de revisão constitucional que sempre foi muito mais simplificado do que aquilo que alguma vez deveria ter sido.
Contudo, hoje encontramo-nos num ponto paradoxal na relação do poder executivo com a Constituição da República Portuguesa, dita CRP. O governo não só insiste em violar a Constituição, com o beneplácito de quem, em primeira e última análise a jurou defender: o Presidente da República, como utiliza o Tribunal Constitucional, uma das mais dignas e honestas Instituições da República, como bode expiatório de novas e inconstitucionais medidas. Do Sr. Presidente da República, que à mais pequena dúvida de constitucionalidade da mais pequena lei a deve enviar para o Tribunal Constitucional (quanto mais a do Orçamento Geral de Estado) ao Sr. Primeiro Ministro que insiste em atentar contra um órgão de soberania, destruíndo assim a unidade nacional em torno do respeito que os cidadãos devem à República (como se não bastasse já o desmérito que tem em, a cada dia que passa, descredibilizar o poder político), estamos a assistir, serena e calmamente, ao maior ataque jamais perpretado contra a CRP e o órgão que fiscaliza o seu cumprimento.
Pode ser que não seja um Golpe de Estado Constitucional, mas se Afonso Costa disse, nas Cortes em 1907, que por muito menos do que D. Carlos fez, rolou a cabeça de Luís XVI, eu arrisco-me a dizer que por muito menos do que Passos Coelho e acólitos estão a fazer, rolou a cabeça de D. Carlos, que sempre tinha a virtude de ser homem de grande saber e cultura.
As palavras são actos e tempos extraordinários requerem palavras extraordinárias.
(continua)
Hoje vem comigo. Tudo o que caminharmos é em direcção aos novos tempos.
Dá-me a tua mão. Não somos mais a divisão do presente.
Nos verdes campos do futuro, não me contes os teus sonhos. Vive-os comigo.
Somos a esperança inalienável de viver uma epopeia de capítulos épicos.
Porém, a paisagem de homens e mulheres sem-Deus permanece. Quem somos sem fé? Apenas o possível.
O país é a nossa lavoura e a nossa esperança a sementeira. O possível? Ao horizonte lançar a semente. E regá-la.
*Fotografia de Alberto Korda, "La nina de la muneca de palo", 1959.
Uma semana bastou para se perceber como se mobiliza um povo. Um Governo que aceitou governar em tempos de exigência, competência e especial sensibilidade, consegue desbaratar num ano a legitimidade política em sucessivos erros, omissões, polémicas com os seus membros, perder-se nas promessas políticas que encantam um povo cansado, contudo sereno e contido, sábio que é e está no poder da sua acção e do seu papel nestes tempos de indigência, e em três actos públicos, próximos no tempo, esgotar a paciência do povo que governam, e destruir a legitimidade que lhes resta.
Nos três actos um dado comum. Obstinado na cruzada ideológica neolibeiral, o Governo apresenta como medida regeneradora a aplicação da descida da Taxa Social Única (TSU), descida essa a ser paga pelo trabalhador. Perante tal fundamentalismo ideológico e descarado experiencialismo social, um incomum consenso social se constrói, tal é a evidência de um desastre a evitar.
Eis que uma manifestação já agendada, com o intuito de demonstrar o descontentamento quanto ao futuro previsível, ao status quo europeu instalado e distante, e à injustiça que se agrava e aprofunda, surge agora como farol de um descontentamento mais amplo, alargado e consciente das mesmas causas e consequências, implacável com o experiencialismo social e ciente que “há limites e nem tudo é legítimo”.
Acorda, não tenhas medo. Não estás só. No difícil e sensível jogo da Democracia, o momento da Rua é este. Recorrendo às palavras de Hélia Correia: “De que armas disporemos, senão destas” (*).
* Correia, Hélia – «A Terceira Miséria». Lisboa: Relógio d’Água, 2012. p. 39.
Nota: Foto de Eduardo Gageiro, 1 de Maio de 1974.
Este Governo tem como principal objectivo combater o povo português. O fresco aviso de confisco de salários no próximo ano é apenas uma pequena parte da descapitalização em curso, secundarizando-se na importância a venda a retalho de todo o património público que presta tarefas fundamentais ao funcionamento de toda a estrutura do Estado. A montante, esta investida embate, quer o Governo queira, quer não o queira, em matérias de legalidade e legitimidade democrática. Um Governo que à revelia dos seus governados inverte tudo aquilo com que se comprometeu em acto eleitoral não goza de legalidade para continuar a exercer funções nem de legitimidade para continuar a representar os cidadãos portugueses.
No seguimento de toda esta fraude, o Presidente da República é obrigado a intervir. Sabemos que Cavaco Silva não é admirador das funções do cargo que ocupa (diria mesmo que se sente infeliz em tal posição), mas deve, como já referiu a outros propósitos, em situações extraordinárias tomar decisões extraordinárias! Este Governo não tem mais confiança política para governar o país e, no respeito pela CRP, não poderá continuar a comprometer a soberania e independência nacionais, os direitos e liberdades, o património cultural, a educação e a saúde. Temos direito à resistência. Temos direito a resistir contra este atentado às nossa garantias. Se não nos sentimos representados, representemo-nos por nós próprios e forcemos eleições! Todos na rua!