No interessante e curioso debate sobre a História de Portugal, obra coordenada por Rui Ramos, e nomeadamente sobre o período do Estado Novo, que durante os últimos meses vem ocorrendo nas páginas do Público, verifica-se a tentativa de relativização de termos e episódios da história deste período, quanto ao impacto e brutalidade da ditadura do Estado Novo.
Ora, como nos lembra agora Irene Flunser Pimentel, em artigo no jornal «Público» de hoje, convém não trocar os nomes das coisas. O que Rui Ramos chama de "agressões verbais e físicas" é a tortura. Outro exemplo: Rui Ramos, diminui o impacto e a importância da guerra colonial, pela dimensão do número de mortos em comparação com o número ocorrido no Vietmane.
Não entrando no campo do estudo histórico, nem colocando em termos das boas ou más intenções ou sequer do ajuizamento do comentário semanal histérico, o que Rui Ramos faz em relação a determinados episódios é tão só reescrever a História, sendo que a relativização de princípios e valores morais e fundamentais tem perigos demasiado evidentes.
A relativização na leitura das lições e erros do passado, e do que destes fica de memória, não pode ser diminuída sob pena de, na mesma quantidade e medida, se proporcionar a diminuição e alcance de erros presentes e futuros.
O banqueiro Fernando Ulrich defende que o Estado deve colocar empregados no seu banco e em outras grandes empresas enquanto recebem o respectivo subsídio de desemprego. O seu grande desejo é ter pessoas a trabalhar gratuitamente para si e a lucrar enquanto o Estado assume todos os custos. Depois avança: “Se ninguém negociar comigo nada, se ninguém me propuser nada, o caminho em que nós vamos é o de reduzir pessoas. E é isso que vamos continuar a fazer porque é isso que aumenta a rentabilidade do banco”.
«A litania da penitência sempre procurou obstáculo à contestação. É assim no campo religioso e é assim no campo político.», disse Agustina Bessa-Luís em Crónica do Cruzado Osb.
Dos melhores pensadores e do labor dos exímios organizadores da ordem e do sentido das palavras, nascem as melhores histórias. Dessas saem algumas expressões, feitas citações sempre à mão para certos momentos. Estas, as citações, correm constantemente dois riscos: desvirtuarem o sentido da vontade do criador ou, por outro lado, limitarem o alcance e a dimensão do excerto, diminuindo-o na sua acção interventiva e até condição civilizadora. Não é pois por reserva que não indico o número da página do excerto escrito por Agustina, é antes por exercício objectivo da reflexão. E também pela sua adequação a um certo e determinado episódio.
Agustina, em definição de si própria, chamou-se “pensadora entre as coisas pensadas”, com tudo o que tal significa de humilde mas sublime e supremo, e quando pensou e registou o excerto que citei, talvez não estivesse a reflectir acerca do posicionamento da Igreja Católica Apostólica Romana perante a consciência e a liberdade cidadã na adesão e vontade participativa em manifestações e protestos populares.
Salvaguardando a totalidade do que foi dito por José Policarpo, Cardeal Patriarca de Lisboa, indivíduo esclarecido, de quem deduzo professar a doutrina social da igreja, repugna-me a conclusão a que chega no seu estudo constitucional, e deste não retire o que contém de equilíbrios, sobretudo os não inscritos nas atribuições e competências dos órgãos da República Portuguesa. De grosso modo: o contrato social.
Estamos todos conscientes que o momento actual é especial, pelas tensões e malformações que se podem gerar na sociedade, e perante este momento não posso deixar de expressar a estranheza perante a táctica e dúbia opção católica, e de lembrar que a mesma teatral mas insegura Igreja optou muitas das vezes pelo confortabilíssimo lugar na conveniência da manutenção do seu poder, aquando de outro poder tão obscurantista quanto o seu pode ser.
"Em nome do que passámos
não deixaremos passar
o patrão que ultrapassamos
e que nos quer trespassar.
E por onde a gente passa
nós passamos a palavra:
Cada rua cada praça
é o chão que o povo lavra.
Passaremos adiante
com passo firme e seguro.
O passado é já bastante
vamos passar ao futuro."
Excerto do poema "Não passam mais", da autoria de José Carlos Ary dos Santos.
Trespassará o espírito do comum cidadão europeu o sentimento da mais profunda indiferença pela atribuição do Prémio Nobel da Paz à União Europeia, espaço de cidadania comum a povos de vinte e sete Estados, num total de quinhentos milhões de pessoas.
Mais depressa ou mais devagar integraram-nos e integramo-nos. Periodicamente vivemos já uma certa angústia perante previsões e a aproximação de actos eleitorais em muitos dos países da nossa Europa; ansiamos pelas mudanças que nestes países se constroem; sofremos pelo sofrimento dos povos grego, espanhol ou italiano, irmãos que estamos e somos, filhos da mesma mãe.
Sobre os escombros da mais tenebrosa guerra lançaram-nos o repto da paz, sob um projecto de solidariedade que, ante o signo da felicidade e esperança, abraçamos e muitas vezes acarinhamos, imbuídos no espírito das mais belas e possíveis utopias.
Alguns, loucos talvez, dizem deste projecto que é Património da Humanidade, outros, perante tão alta e digna atribuição rejubilam, afastados e desencontrados que estão dos povos, e hábeis que são em chamar a si as luzes das soluções que não surgem.
Porventura não será de guerra o estado em que estamos, contudo não é em paz que nós, cidadãos europeus, vivemos. No próximo ano atribuam aos cidadãos europeus o Prémio Nobel da Paz.
Ao Eng. Aquilino Ribeiro Machado, a nossa vénia perante o seu uivo.
Morreu o Eng. Aquilino Ribeiro Machado, socialista, co-fundador do Partido Socialista, primeiro Presidente eleito da Câmara Municipal de Lisboa após o 25 de Abril, filho de Aquilino Ribeiro, neto de Bernardino Machado, um humanista, um homem livre, um lobo.
A nosso convite o Eng. Aquilino Ribeiro Machado deu-nos o privilégio de inaugurar este blogue em 13 de Setembro, um contributo inestimável de um substrato de experiência ética e moral, dizendo-nos para quem os lobos uivam, com o uivo dos espíritos inacomodados, num discurso da transmissão da mais elevada herança geracional, no estatuto de perpetuidade dos valores fundamentais:
"Para quem os lobos uivam?
Aquilino, muito me regozijou a novidade, que me deste, de que um grupo de amigos, gente nova e de espírito aberto, estava na iminência de lançar um blogue sob os auspícios do título do inconformado livro de teu avô. A escrita tem, como tudo na vida, os seus avatares e os gostos vão cambiando com o tempo. Há todavia certas invariantes que permanecem e que atribuem o estatuto de perpetuidade a uma obra literária pela situação humana que retrata e pela qualidade formal em que é lavrada. Ambas se conciliam para constituir uma identidade e uma vivência a que a miúde nos reportaremos como marcas obrigatórias do nosso conhecimento. O "Quando os Lobos Uivam" reúne muito desses predicados e, por isso, se continua a demarcar. Símbolo igualmente do espírito de inacomodação e do desejo de liberdade que vive na alma de todo o homem verdadeiro, o uivar dos lobos simboliza também a herança primordial que trazemos dentro de nós e nos reintegra na natureza. Suponho que os teus amigos, para lá de atentarem no chamamento profundo das antigas raízes estejam sobretudo interessados em privilegiar aqueles a quem intentem desinquietar ou doutrinar nas vias do progresso e do futuro. Que isso se faça sob a égide de Aquilino, o escritor, será pois motivo de orgulho e de reconhecimento da minha parte, como sei que será igualmente da tua.
Aquilino Ribeiro Machado"
À sua Família e Amigos, o nosso reconhecimento e profundo pesar pelo seu falecimento. O seu legado será inspiração e força para que os nossos uivos se ouçam bem alto, e acordem os espíritos adormecidos e inquietem as almas dos que destroem o nosso habitat.
A República é o momento constituinte das nossas opções ideológicas. A República, em si, não é mais do que o lugar onde os cidadãos se encontram para discutir, pensar e decidir o futuro da cidade. Da cidade enquanto colectivo, enquanto aspiração e inspiração. A República pode ser, e é, um momento poético, que resulta de um radical etimológico partilhado entre polis e poesis, cidade e poesia enquanto momento criador, no original grego dos termos.
As crises que assolam as sociedades contemporâneas, sendo económicas, são também, et pour cause, políticas, societárias, culturais e, logicamente, morais. Recuperar o sentido da defesa do serviço da causa pública enquanto acto voluntário e livre e descomprometido obriga-nos a regressar à origem dos actos e das palavras, como modo de recuperar o que é ainda puro, criador, originário e imaculado dos vícios humanos mas pouco humanizadores em que as coisas caíram nos últimos anos ou, radicalmente, desde Auschwitz. Não é por acaso que Theodor Adorno dizia que depois dos campos de concentração não podia haver mais poesia. Sendo uma posição radical com que não concordo, não podemos esquecer a capacidade de regeneração dos individuos e das sociedades, como acto de vontade supremo de onde resurge, cicliamente, a necessidade de reconstruir ou construir sempre de novo uma sociedade melhor, a melhor República.
A República não é pois uma Utopia. É quotidiano, é lugar, tempo e modo. Da mesma maneira, a República é e concretiza-se, como dasein, com debate e discussão em que a nossa primeira ambição deve ser a desconstrucção do discurso anti-republicano, que não tem que ser e raramente é o monarquico, mas antes o falacioso, o sofista, o demagógico e o dos que o usam contra a cidadania.
Não é preciso um considerar-se republicano para defender a República. Onde está um comportamento integro, honesto e vertical, está a República, e essa deve ser a nossa preocupação enquanto cidadãos empenhados e comprometidos com a construcção de uma sociedade mais justa, mais fraterna e mais igual. Por que quando o resto nos faltar, teremos sempre a consciência segura de tudo termos feito para honrar aquilo em que mais acreditamos.