Verdadeiramente este não é um conto, é sim um post de blogue, para este Natal. Se ao título pudesse acrescentar mais algumas palavras, não fugindo dessa tradição talvez iniciada por Dickens, que obrigou tantos e tantos escritores a acrescentarem algum aspecto porventura esquecido aos respectivos leitores, através de uma ou outra inspiração: ora o espírito de Natal daquele Dickens; ora o Natal inglês e o progresso da Humanidade de Eça de Queiroz; ora o transmontano Natal de A.M. Pires Cabral. O conto é o escolhido para apelar à sensibilidade humana, provocar a atenção às desgraças, desventuras e infelicidades alheias, e alertar os alheados do mundo e da realidade. Pois bem, e como dizia, se ao título pudesse acrescentar mais algumas palavras, o subtítulo deste post seria: o Natal do Pai Natal, e as cartas propositadamente deixadas em cima da secretária.
Habitualmente deixado para um segundo ou terceiro plano, essa tão evidente falha ao espírito de Natal, o Pai Natal, começa agora os seus momentos de descanso, com o início do que é o seu próprio Natal. Na verdade, esse Natal não é tão próprio assim, já que coincide com o de alguns milhões de pessoas que o comemoram em noite de reis, e não no feriado de 25 de Dezembro, mais tarde antecipado para a véspera. É estranho mas é assim. Uma boa parte do mundo impôs a um ano de espera, o momento de uma hora. Ao Pai Natal, com personalidade de fácil adaptação à mudança, moldada em séculos de existência por experiências acumuladas que auxiliam em qualquer ocasião, até deu algum jeito, não o sobrecarregando com o trabalho de tudo fazer numa só noite, ou mesmo algumas horas.
Está agora descansado, ganhando balanço para o que há a fazer e dentro de meia-hora e no restante sempre trabalhoso ano. Estendido sobre o confortável e bem acolchoado sofá, em frente a uma bela e radiosa lareira, em noite que para lá das paredes se sabe fria. Aquece-o a lareira, alguns movimentos da nona sinfonia de Beethoven, que lhe enrugam e esticam as têmporas, o cálice de Porto, e a alegria de acompanhar, certamente com menos sucesso, a voz do baixo do CD oferecido a si próprioem algum Natal:
«O Freunde, nicht diese Töne!
Sondern laßt uns angenehmere
anstimmen und freudenvollere.»
«Ó, amigos, mudemos de tom!
Entoemos algo mais prazeroso
E mais alegre!» (tradução)
Mas, acaba a sinfonia e começa o trabalho. E que trabalho. Responder às quartas deixadas para depois do Natal e dos Reis. Empilhadas estão as cartas de Pedro, Paulo, Miguel e Aníbal, entre outras. Não houve bom comportamento que os salvasse, nem momento de redenção na viragem do ano, eles que gostam tanto da retórica da moral religiosa e de lembrar da culpa da vivência acima das possibilidades. Lendo as cartas, o Pai Natal não consegue deixar de esboçar um leve sorriso de ironia. Todos trabalharam muito, foram incansáveis, tudo fizeram, e no fundo estão convencidos que tudo está melhor. A ironia está no que dizem, e por no outro lado, a constatação da triste e tenebrosa realidade, a mesma que inspirou os contos de Natal de alguns autores. A alegria de Beethoven está agora posta de lado e nem tudo é prazeroso.
É tempo de responder às cartas, por desagradável que esse momento seja, e é. Inerências da função. O tom é cordial, assim deve ser com todos os que lhe escrevem. A resposta a estes é curta. Para bom entendedor meia palavra basta. O presente que terão estes quatro é conviver uns com os outros, e o bónus de um ano que lhes poderá sair infernal. Até o Pai Natal cá estará para dar uma ajudinha.
Os olhos dos mais atentos repararam na forma como Cavaco manejou, perante Jaime Gama, a Constituição da República Portuguesa. Naquele juramento, a inocência de grande parte dos ouvidos romanceou tal promessa que, fora do Cavaquistão, os pescadores aplaudiam. Porém, os mais atentos e desconfiados pensavam no sadismo que seria, depois daquela cerimónia quase matrimonial, Cavaco tratar aquele documento da mesma forma que os seus discursos de campanhas eleitorais: algemá-los, acorrentá-los e escondê-los (de preferência em algum local escuro). Foi o que Cavaco fez.
Pedro optou por um modus operandi diferente. A sua alienação mental empurrou-o para uma revisão constitucional, acompanhada da narrativa utopista de que essa mesma revisão não é necessária pois o actual documento, ainda que "cristalizado", permite opções políticas como a tributação de pensões (e o fruto pelo Tribunal Constitucional proibido, é para ele o mais apetecido). O génio de Pedro (ou de Laura, não tenho a certeza) força-o ainda a defender uma economia de mercado com salvaguardas de risco para futuros monopólios privados a oferecer à sua gente. Força-o a propagandear pela diminuição e aumento de impostos, força-o a declarar rendimentos anuais brutos superiores a 100.000 € e explicar aos portugueses que também partilha da tristeza de não poder oferecer prendas de Natal aos seus filhos. Pedro orgulha-se de ser Primeiro Ministro sem que ninguém se orgulhe dele.
Estas são as personagens da nossa Democracia eleitas para fazer cumprir um texto fundador. Passam os dias e cresce em mim a certeza de que estamos no bom caminho, aquele que nos aproxima do fim dos mandatos de representação política desta corja.
-Renovar a mentalidade da élite portuguesa, tornando-a capaz dum verdadeiro movimento de salvação;
-Criar uma opinião pública nacional que exija e apoie as reformas necessárias;
-Defender os interesses supremos da nação, opondo-se ao espírito de rapina das oligarquias dominantes e ao egoísmo dos grupos, classes e partidos;
-Protestar contra todos os movimentos revolucionários, e todavia defender e definir a grande causa da verdadeira Revolução;
-Contribuir para formar, acima das Pátrias, a união de todas as Pátrias - uma consciência internacional bastante forte para não permitir lutas fraticidas.
*Seara Nova, 20 de Novembro de 1921