Quarta-feira, 30 de Julho de 2014
A propósito de um artigo de opinião hoje publicado no Jornal I pelo Pedro Nuno Santos, a certa altura afirma que «A política deixou de dar resposta aos problemas e aos anseios dos cidadãos e estes deixaram de acreditar nela como forma de melhorar as suas vidas. O problema é a ausência de resultados e não o formato do sistema eleitoral.»

O problema não é, efectivamente, o sistema eleitoral, da mesma maneira que não é a forma de regime ou o voluntarismo de quem alerta para a degradação das instituições. Reforço a minha leitura de que estamos no fim de um sistema sem vislumbre do que se seguirá. Podemos criticar a emigração em massa e os baixos salários e a taxa de desemprego mas, inevitavelmente, nenhum governo resolverá, em tempo útil, estas questões.

A alternativa aos problemas dos nossos tempos é a radicalização da acção e do uso da palavra. E o que nos trará essa radicalização senão a queda mais rápida do sistema vigente? Assumindo que estamos mais confortáveis com a mudança abrupta da ordem das coisas radicalizemo-nos na defesa dos nossos interesses. Acontece que os interesses são tão difusos dentro da massa 'oposicionista' que não fica esclarecido ou claro o rumo que se seguirá.

O certo é que a manutenção dos status quo das elites dirigentes, mormente da elite económica e política, não logrará sequer manter a estabilidade política necessária para viver numa razoável paz social. Mas, pelo contrário, a destruição das mesmas elites, fará ruir mais rápida e definitivamente, durante um tempo imprevisivelmente longo, o que resta desta mesma paz social.

Tenho para mim que só a ordem (de preferência democrática) sustenta o progresso, e que qualquer desregulação beneficia o elemento mais poderoso propiciando o aumento do capital pelo capital e a acumulação da propriedade pelos seus detentores. Em caso de vazio de poder ou de desordem momentânea teremos os peixes grandes comendo os peixes pequenos. Não há anarquia ou anarquismo que não seja, sempre, anarco-capitalismo. Só o primado da lei defende o cidadão comum.

Beccaria escreveu que vale mais uma pena leve que seja sempre aplicada que uma pena forte e violenta que só esporadicamente o seja. Num mundo globalizado o primeiro poder que se impôs foi o do Capital. Num mundo globalizado governado pelo Capital não há espaço para a lei e a regulação. Num mundo globalizado em que o poder do Capital superou, em larga medida, o dos Estados, não há lugar para o legalismo. Num mundo globalizado onde não há lugar para leis que se possam, universalmente, aplicar, não há lugar para a Justiça mas apenas para a especulação e a violação dos princípios básicos de defesa dos Direitos Humanos. Num mundo em que a verdadeira soberania é a soberania financeira, em que as grandes empresas são mais ricas e poderosas que as nações médias, esmagam as pequenas e dominam as grandes, não haverá espaço para reformas que possam fazer mais do que prolongar a dor, qual paliativo recorrente. Argentina, Portugal, Grécia, etc (num mundo civilizado e mais notório). Este Capital, arrastado por uma mão invisível e insconsciente, desprovida de humanidade (porque é movida pela acumulação do capital) vai puxando a corda sistematicamente até que, um dia, nem a França, que esteve quase, se salvará. Os Estado não podem continuar a construir linhas Maginot para deter tanques, é preciso construir firewalls contra a avareza e rapina.

Se à pequena escala, em Portugal, o bipartidarismo democrático foi sustentado pela vontade dos banqueiros e duns poucos detentores do capital com influência directa na tomada de decisões, a verdade é que o fim do domínio desta oligarquia humana nacional vai ser substituida, brevemente, pelo conceito do homem que, em Washington ou Moscovo, carrega no botão que faz deflagrar a bomba em Bagdad ou em Donetsk. O que significa dizer que vai ser substituida pela vontade do especulador de acumular capital independentemente do dano que causa (quer porque a causa primeira da acumulação da sua riqueza está demasiado longe, quer porque os financeiros e especuladores não estudam essa causa mas apenas a consequência directa da acção que tomam).

Podemos votar ao centro nas deputais, à direita nas municipais e à esquerda nas presidênciais. Tudo o que estiver abaixo dum domínio de controlo da actividade económica internacional tornar-se-á responsabilidade das Juntas de Freguesias. Qualquer reorganização terá de ser mundial, até porque soluções autocráticas tornarão qualquer governantes, na melhor as hipóteses, num qualquer Avelino Ferreira Torres de trazer por casa. Não se trata apenas de vergar duramente o capital à vontade e acção política. Trata-se de vergar o capital às necessidades humanas. Tout court.


publicado por José António Borges às 14:36 | link do post | comentar

Quarta-feira, 23 de Julho de 2014

 

Em tempos, o Ministro Brasileiro Eduardo Portella, com a sua célebre frase “Eu não sou Ministro, eu estou Ministro”, mostrou claramente qual a perspectiva que se deve ter do desempenho de cargos, da sua transitoriedade, e da separação entre o cargo (e, por maioria de razão, a organização) e a pessoa que o desempenha. Infelizmente, no PS, impera hoje enorme confusão entre a liderança e o partido em si.

 

 

A direcção nacional do PS e particularmente António José Seguro vivem hoje no absoluto equívoco de confundir o Partido Socialista com a sua direcção e o seu Secretário Geral. Num partido político, mais do que em qualquer outra organização, é absolutamente natural e saudável que existam diferentes opiniões e diferentes tendências internas. É absolutamente normal, desejável até, que elas se confrontem, que tenham projectos e objectivos diferentes. Se assim não fosse, uma importante parte da função que os Partidos desempenham na Democracia seria abandonada.

 

Quando Seguro (e os seus mais próximos dirigentes de topo) fala em “traição” ou diz que “criaram um problema ao PS” confunde o partido com a sua direcção nacional (e com ele próprio). Os apoiantes de Seguro entendem que a crise que foi aberta é negativa para o PS e têm liberdade de entender isso, tal como os apoiantes de Costa entendem que estão a ajudar o PS a sair de uma situação de estagnação que se tornou evidente com os resultados das Europeias. O que não é admissível é que se ache que quem cria problemas à direcção nacional está a criar problemas ao partido, como se ambos fossem uma e a mesma coisa. Fazem lembrar o governo quando afirma que o Tribunal Constitucional está a levantar problemas ao país quando mais não faz do que cumprir a sua obrigação, levantando problemas para o governo o que é diferente porque o governo dirige o país, mas não é o país.

 

Ninguém criou problemas ao PS, foram criados problemas à direcção nacional do PS. Um ataque à direcção do PS, legítimo ou ilegítimo, não é um ataque ao PS. Se o fosse, teríamos o esquizofrénico problema de termos vários Partidos Socialistas uma vez que, Interpretando dessa forma, o actual partido Socialista está claramente a atacar o Partido Socialista de há três anos e o putativo Partido Socialista do próximo ano está, presume-se, a atacar o actual Partido Socialista. Seria uma confusão, não fosse o facto estabelecido, ainda que ignorado por Seguro, de que uma particular direcção não define uma organização.

 

Poder-se-ia achar que esse discurso é um mero recurso retórico que ajude a mobilizar apoiantes e a convencer indecisos. Seria já suficientemente mau que assim fosse, manipulando os sentimentos de apoiantes e simpatizantes. Mas não o é, é a materialização da visão de quem acha que é, mais do que dono do partido, ele próprio o partido e isso é muito pior.

 

A estratégia de se barricar atrás de uma interpretação enviesada dos Estatutos, a estratégia de ataque (que muitas vezes resvala do político para o pessoal) a António Costa, que prejudicará e muito o partido se Costa ganhar as primárias, a convocação de eleições para as distritais do partido, multiplicando por 21 as disputas internas, e o arrastar por quatro penosos meses esta clarificação só podem ser explicadas pela visão de quem acha que está a defender, não um Secretário Geral específico, mas o partido.

 

Só isso pode explicar os desmandos que, existindo de parte a parte, a nível de topo estão presentes maioritariamente do lado de Seguro (com o expoente do filho que acusa o próprio pai de ser tonto). Só isso pode justificar que se ponha acima do próprio partido e dos seus interesses a defesa do seu actual líder (em detrimento de líderes passados e futuros, diga-se). Só o estado mental e emocional de se estar a defender, não uma facção, dentro de várias existentes no partido, mas o próprio partido de uma tomada hostil por forças ilegítimas pode justificar o extremo a que se está a chegar, arriscando o futuro daquilo que pensam (genuinamente porventura) defender.

 

Ora por muito boa conta em que se tenha Seguro (e os seus apoiantes), o partido existia antes dele e (espero) continuará a existir depois dele (seja isso quando for) e desta disputa. É por isso que deveria ser o futuro do PS, mais do que de qualquer direcção nacional específica, que deveria presidir às nossas decisões, o que está longe de se verificar ultimamente nas decisões dos órgãos nacionais.

 

Esta confusão entre quem está Secretário Geral e o próprio Partido Socialista não é só errada, é perigosa. Quando um Secretário Geral cai neste erro, pondo assim em causa o partido, a sua substituição já não é só necessária, é urgente.



publicado por Gonçalo Clemente Silva às 01:55 | link do post | comentar

Quarta-feira, 16 de Julho de 2014
Quando em 1920, V. I. Lenin publicou o seu livro 'Esquerdismo, a doença infantil do comunismo', atacou os comunistas ingleses e alemães por recusarem fazer acordos com os respectivos governos, nomeadamente com os partidos de esquerda moderada. Lenin tinha a ortodoxia ideológica da Esquerda e o pragmatismo racional da Direita. Esta aparente 'cedência' aos moderados era uma maneira de, ao impedir a Direita de aceder ao poder, influenciar os trabalhistas ou os socias-democratas de modo a 'radicalizar' a sua acção governativa. Havia uma compreensão clara do conceito de 'mal menor', não como um bem, mas como isso mesmo, um 'mal menor'.

Quando Catarina Martins afirma, discordando, que 'Ana Drago privilegia soluções de governação' contrapondo que o que se impõe é a necessidade de um programa de esquerda sem cedências, o que a líder do Bloco está a afirmar é 'governaremos com o nosso programa ou tudo nos é igualmente mau'. Esta desresponsabilização despudorada à melhor maneira de Pôncio Pilatos tem um grande ónus sobejamente conhecido: facilita a governação da direita. E isto não é coisa pouca: representa, outrosim, a maior ignomínia política da esquerda radical portuguesa desde o fim do PREC. A aparente 'desortodoxia' da nova esquerda bloquista é, afinal, um engodo, pois representa apenas a incapacidade política de lidar com a realidade.

Se, há uns anos, durante o crescimento exponencial do BE, havia a convicção profunda de que poderia, por força da propaganda e do valor das ideias, continuar num 'crescendo' eleitoral que afirmasse claramente o espaço que esse partido ocuparia no espectro nacional, hoje em dia, uma vez perdido o vigor inicial, nota-se que pouco há-de restar. A actual aproximação ao Podemos espanhol apresenta-se como um desejo sem valor. Uma projecção. Isto, e o que explico de seguida, surge num cenário pós-marxista, depois de Roland Barthes ter introduzido a importância da semiologia através do discurso, do símbolo e da língua.

Após isto, parece-me, o cerne do problema do Bloco de Esquerda, não reside aqui. Se notarmos que força eleitoral do BE encontra-se numa certa classe média urbana que adopta um radicalismo fácil por virtude duma ortodoxia permeável a um estilo de propaganda e discursos proto-libertários anti-capitalistas, chegaremos à rápida conclusão que não será nunca um partido de implantação nacional extensível a todos os cidadãos. Há um desprezo bloquista pelos 'itens' populares que tem tendência para uma de duas coisas: classificá-los em frasquinhos de formol e guardá-los em gabinetes de curiosidades ou adoptá-los como simbólicos pela sua beleza estética. Ao contrário do Partido Comunista Português, o militante intermédio do Bloco de Esquerda pode muito bem ser apenas um reprodutor exímio do banal anti-conformismo mas militantemente activo. Não nos enganemos: sobejam os militantes intermédios dos partidos do poder que são o seu contrário igualmente repudiável: banais conformista expectantes. Este últimos costumam trazer a gamela à cinta.

Diz o dito latino 'omnis civitas contra se divisa non stabit': a cidade contra si desavinda não permanecerá. O mesmo acontece com a Esquerda. Mesmo que pensemos que o panorama político actual nos obrigará a largar, mais tarde ou mais cedo, estes velhos conceitos antitéticos republicanos de esquerda e direita, a verdade é que a 'civitas' continua a girar em seu torno, pelo que continuaremos a fazer política neste base. O 'Podemos' vem dizer que já não se trata de uma luta de esquerda e direita mas os de baixo contra os de cima, o que, em abono da verdade, é exactamente a mesma coisa quando não pior, já que esta segunda representação virará os cidadãos uns contra os outros numa base agressiva e populista.

O exaspero dos militantes da esquerda radical que, conscientemente, não vêem as suas forças políticas influenciarem a política numa base real, é que transformará a esquerda. Do PS ao BE. Veremos se o Livre foi o primeiro a perceber isto. O Bloco, esse, enquanto existir nestes moldes, continuará a servir a Esquerda como um pacifista serve a paz sempre que põe bombas nos quartéis.


publicado por José António Borges às 14:46 | link do post | comentar

Terça-feira, 15 de Julho de 2014

 

E julgareis qual é mais excelente,
Se ser do mundo Rei, se de tal gente.

 

Muita razão tinha Camões quando, na boca de Vasco da Gama, apelidou a pátria nossa amada de “ditosa”. Ditosa ela é sem dúvida: ditosa pelo seu clima ameno, pela beleza dos seus campos, dos seus bosques, dos seus montes, rios e praias; ditosa pelos seus belíssimos monumentos, relíquias e memoriais de um passado grandioso; ditosa pela doçura e expressividade da sua língua e pela grandeza dos poetas que a embelezam; mas sobretudo ditosa pelas suas gentes acolhedoras, boas e honestas. Mas a grande dita de Portugal reside sobretudo nas suas (perdoe-me o leitor o galicismo) elites, na fina flor da sua gente, na crème de la crème da Nação Portuguesa.

 

Afortunada pátria! Felícissima nação! Mais de cem anos passaram desde a implantação da Primeira República, um século inteiro desde que o princípio da hereditariedade foi expurgado do ordenamento jurídico. No entanto, aquilo que poderia ter resultado numa calamidade impensável, numa segunda Alcácer-Quibir dos nossos mais assinalados barões, na anulação e extinção da nossa nobreza, da nossa aristocracia, em bom vernáculo, dos nossos melhores, afinal, para nossa boa-fortuna, teve efeitos muito diferentes. Sursum corda!, que é como quem diz, alegremo-nos!, pois nem mesmo um século sob o jugo de princípios igualitários conseguiram escorraçar da pátria as suas gentes respeitáveis.

 

Os riscos, porém, eram tremendos. Sem um princípio consagrado por meio do qual se pudesse julgar a quem devem ser entregues os mais altos cargos e as mais pesadas responsabilidades, corria a pátria o perigo de se ver nas mãos de gente sem préstimo, gente desonesta, gente incapaz – gente, em suma, que a conduzisse para a ruína. A ideia republicana, justiça lhe seja feita, é bem-intencionada: pôr acima de quaisquer outras considerações, incluindo o sangue, as relações familiares e de amizade, o mérito. Convenhamos que é uma ideia que merece aplauso. Os melhores, os mais capazes, os mais honestos devem, em teoria, ser aqueles nas mãos dos quais devem estar depositados o poder e a responsabilidade.

 

Mas quem deve ser o juiz do mérito? O princípio republicano (ainda que não aplicado por inteiro pela Primeira República) nisso é claro: o povo. Mas o povo, como todos sabemos, pode ser acolhedor, bom e honesto, mas pouco entende dos arcanos do poder e facilmente se perde neles. Por isso, como Teseu no labirinto, precisa da ajuda de uma Ariadne para encontrar o seu caminho e derrotar o Minotauro do populismo, que só leva ao caos e à desordem. Qual Ulisses, precisa de quem o amarre ao mastro do navio, para que não se precipite no mar e na ruína, seduzido pelo canto das Sereias que lhe prometem bens meramente aparentes e enganadores. Precisa, portanto, de uma mão benévola que o guie e que o ampare, que o acalme nas suas preocupações, que lhe acaricie a cabeça em jeito de consolo, que o proteja e o embale. A vida do povo é já árdua o bastante para que tenha ainda de se apoquentar com matérias tão complexas e para as quais (abençoada pátria!) não escasseia quem tenha o engenho de as tratar.

 

Nisto Portugal é superlativamente ditoso. Por feliz coincidência, quase todos aqueles a quem outrora o poder estava entregue em virtude das suas relações de parentesco e amizade estarão agora em cimeiras posições, mas em virtude do seu reconhecidíssimo mérito. É testemunha bastante disto que a larga prole daqueles nossos egrégios avós – ou, na sua falta, quem fielmente a serve – ocupe agora muitos dos mais importantes e influentes cargos no Estado, na Banca e nos Negócios. Felicíssima pátria! O princípio de selecção das nossas elites mudou radicalmente – mas, por feliz casualidade, as elites continuam (descontando um ou outro caso mais duvidoso) a serem as mesmas. É isto um claríssimo sinal de que nós Portugueses fomos fadados a sermos sempre governados por gente boa e respeitável, sempre a mesma, porventura em virtude de um qualquer favor divino.

 

Reflectir condignamente acerca deste profundíssimo mistério ultrapassa em muito os meus dotes intelectuais. Outros países, certamente menos afortunados, não gozam deste favor. Nesses outros países a introdução do princípio do mérito e de outros mecanismos com o intuito de constituir uma sociedade mais igual levaram a uma substituição das suas elites. São outros agora que os governam, para o bem e para o mal. Mostra isto que aqueles que antes os governavam não deveriam estar onde estavam. Em Portugal, continuaram onde sempre estiveram, o que prova que já estavam onde deveriam estar. E é esta estabilidade a causa da tanta fortuna.

 

Outros países fazem uso constante, oportuno e eficaz de mecanismos de controlo, de regulação e de fiscalização daqueles que ocupam cargos de poder não só na Política como nos Negócios mais importantes. Nesses outros países a Imprensa vigia, fareja e esgravata, procurando erros e mesmo desonestidades naqueles que mais responsabilidades detêm na condução dos destinos colectivos dessas nações. Há quem veja nestas circunstâncias sinais de que esses outros países são mais democráticos, justos e funcionais. Mas talvez não seja esse o caso. Pode antes ser que a necessidade de tais mecanismos e de uma Imprensa hiperactiva seja, pelo contrário, sinal da falta de dimensão moral e de respeitabilidade das suas elites corruptas. O povo português, felizmente, vive bem sem esses expedientes, no sossego confiante de quem é quase sempre governado por gente respeitável.

 

São por isso absurdas as recriminações daqueles entre nós que se queixam da impunidade e da inimputabilidade dos nossos melhores, que acusam até de constituírem uma família – no sentido mafioso do termo. Dizem esses cínicos que as elites portuguesas nos arrastaram para a ruína, que têm vivido à custa do Estado e do Povo português, que têm exercido uma influência excessiva e indevida sobre a Política, que têm monopolizado os lugares mais importantes e influentes da nossa sociedade, e que têm constituído teias de favorecimento, interesse e influência que lhes permitem cometer impunemente as mais diversas ilegalidades, e que representam assim um risco para a democracia e para o Estado de Direito. Tudo isto é falso, tão falso que nem merece discussão. Todos sabemos que entre as elites portugueses não há escroques, só gente respeitável. E assim tem sido desde tempos imemoriais.

 

É portanto justíssimo que esta gente respeitável seja protegida pela Imprensa, poupada pelos Tribunais, ajudada pela Política, e, por fim, amparada pelo Povo. É que nada fizeram para merecer o infortúnio que sobre eles ocasionalmente se abate e não são de todo responsáveis pelas dificuldades que actualmente afectam Portugal. São em tudo diferentes dos desempregados, dos reformados, dos pobres, dos que vivem à custa do Estado e de todos aqueles que viveram acima das suas possibilidades – pessoas a quem nós outros nada devemos e que, para expiação das suas faltas e para bem do País, devem ser largadas ao seu próprio destino, para que aprendam a lição. As nossas elites desamparadas, que acidentalmente tropeçaram no infortúnio, estas elites inocentes, essas sim devem ser protegidas e acarinhadas. É, afinal de contas, uma questão de mérito e de justiça.

 

É que a última coisa que queremos é ajudar quem não merece e recompensar injustamente quem quase nos arruinou.  


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publicado por Fábio Serranito às 14:10 | link do post | comentar

Quarta-feira, 9 de Julho de 2014

 

"Reek, Reek, it rhymes with weak."

 

 

A realidade é repetitiva. Há um comportamento que se tem vindo a repetir dia após dia nos últimos três anos, a ponto de constituir um padrão absolutamente previsível.

 

São-nos impostas medidas dolorosas, mas de eficácia duvidosa, até mesmo contraproducente. Os ganhos, se existem, são parcos e em nada compensam os sacrifícios. E, no entanto, o Governo alegra-se, o Governo rejubila, o Governo canta Ossana e Gloria in Germania Angelae! ! E, além disso, rejeita iniciativas que poderiam aliviar o sofrimento do país.

 

Os leitores certamente partilharão a minha perplexidade. Como explicar semelhante comportamento?

 

Os mais cínicos de entre vós talvez se atrevam a sugerir que o Governo trabalha não para o bem do país, em nome de uma qualquer interpretação legítima e razoável do que possa ser o interesse nacional, mas sim em nome de uns quaisquer interesses mais ou menos obscuros, que, neste caso, estão em completa desarmonia com o que se desejaria para o país. Os leitores mais sintonizados com o discurso do “politiquês” poderiam até dizer que existe neste momento um consenso alargado quanto ao que constitui o interesse nacional e o que é preciso fazer para o realizar, mas que o Governo, com os seus poucos aliados, se coloca voluntaria e conscientemente fora desse consenso – aliás, contra esse consenso.

 

Esta interpretação pode e deve ser rejeitada à partida. É impensável que possa haver um Governo europeu, democrático, civilizado – diria até mesmo simplesmente decente – que se ponha propositadamente contra o interesse da nação que governa. É mais do que impensável – é absolutamente monstruoso. Pensamentos desta natureza não são dignos de gente de bem, e entretê-los por mais que um minuto ofende não só o Governo ele mesmo como os próprios que o articulam. Podemos seguramente partir deste princípio que é incontroverso entre gente de bem, entre as pessoas respeitáveis e inteligentes: o Governo e os seus aliados só querem o nosso bem.

 

Mas então como explicar esta ausência de sintonia entre o que o Governo faz e os seus próprios intentos? Será pura incompetência, como sugerem alguns? Estaremos a falar de um Governo que trabalha para o nosso bem e se esforça vigorosamente para levantar hoje de novo o esplendor de Portugal – mas que se atrapalha, tropeça nos próprios pés, e que não consegue senão ir cambaleando pelas ruas acima, estatelando-se ora contra esta ora contra aquela parede? Teremos, portanto, um Governo cheio de boas intenções, mas trapalhão? Um Governo que afunda aquilo que quer salvar? A ideia de um Governo trapalhão é engraçada e até tem o seu encanto. Faz lembrar talvez umas daquelas personagens femininas de comédia romântica, que vai avançando de pequena asneira em pequeno embaraço até aos braços fortes, musculados e protectores do homem da sua vida.

 

E é precisamente este o problema. Onde está o nosso galã, o nosso herói, o nosso salvador? Que é feito do homem alto, elegante, musculado que, no fim de tanta tropelia, nos pegaria ao colo para nos levar para a cama e para a felicidade? A ingenuidade romântica do nosso Governo leva-o a pensar ter há anos encontrado este sonho de amante no Governo da Alemanha, liderado pela competentíssima Angela Merkel, nas instituições internacionais nossas credoras, na liderança da União Europeia.

 

E, no entanto, este amante bate-nos, maltrata-nos, humilha-nos quase diariamente, difama-nos publicamente. Portugal é preguiçoso, Portugal não trabalha, Portugal vive acima das suas possibilidades. Portugal não merece ter coisas boas e bonitas. Portugal é irresponsável, criminosamente pródigo, um perdulário, potencialmente um vigarista. Portugal não é capaz de tomar conta de si mesmo – e por isso precisa de ser orientado, reeducado, governado pelo braço forte do seu amante. Portugal tem de mudar o seu modo de ser, os seus hábitos, as suas convicções, as suas tradições. Portugal não é bom o suficiente para estar na companhia dos seus parceiros europeus. Portugal é uma vergonha e um risco para a Europa. Isto diz a Portugal o amante que o Governo escolheu. E Portugal – ou pelo menos o Governo – acredita, segue, obedece.

 

Portugal faz o que lhe mandam, submissamente, sem se queixar, crendo sem dúvida ou hesitação que tudo o que o seu amante lhe impõe é, na realidade, para seu próprio bem. Portugal entrega-se, rende-se aos encantos dominadores do seu amante. Não importa que o amante humilhe Portugal, que lhe bata, que o faça sofrer – porque o amante é perfeito, o amante é sábio e, sobretudo, o amante ama Portugal a tal ponto que faz tudo para o ajudar, para o salvar mesmo de si próprio. Portugal sabe que não presta e que é só na sua entrega total ao amante que poderá encontrar para si algum valor, redimir-se dos seus erros, limpar as suas culpas e dar sentido à sua existência.

 

Isto seria belo se não fosse tão trágico. Substituamos Portugal por uma qualquer mulher ou homem numa relação desta natureza, e não haverá quem não se sinta cheio de pena – e muitos de nós até se sentiriam tentados em chamar a polícia. Portugal está numa relação abusiva e o Governo, a quem, repito, não podemos nunca imputar má-vontade contra o país por cujos interesses tem o dever de lutar, não faz nada para o salvar; pelo contrário, parece motivado a mantê-lo lá, refém, impotente nas mãos do agressor.

 

Dirão alguns que este retrato é distorcido ou exagerado. Dirão até que o modo como uso esta metáfora não dá conta da complexidade da relação entre Portugal e os seus credores, perdão, salvadores. Dirão que sim, que a ajuda que nos prestam dói e continua a doer e doerá durante muito tempo; que por vezes parece que estão a abusar de nós e não a resgatar-nos. Mas, acrescentarão, tudo isto não só é para nosso bem, como daqui nasce uma relação mais profunda, de uma maior confiança. É nesta dor que nos redimimos, mas, sobretudo, é nesta dor que nos conhecemos a nós mesmos e que adquirimos os meios e os instrumentos para construirmos um novo Portugal – um Portugal melhor, mais confiante, menos indefeso. Dirão que esta relação amorosa não é abusiva. É antes sim uma relação sado-masoquista, no qual Portugal é o parceiro submisso, mas no sentido bom do termo: uma relação voluntária, baseada na confiança e (assim o afirmam os seguidores deste estilo de vida) no amor – um amor invulgar, raro, extraordinário, mas mesmo assim verdadeiro, autêntico e, nesse sentido, tanto mais admirável.

 

Enganam-se os que assim pensam. A metáfora que usam coxeia tão ostensivamente que se deixa apanhar quase tão rapidamente quanto o proverbial mentiroso. É que uma relação tal como descrevem é toda ela voluntária. E a verdade é que, de cada vez que alguém pensa que Portugal deve ou deixar o seu amante ou somente fazer algo para mudar os termos da relação, somos de imediato relembrados de quão medonhas seriam as consequências. Uma tal relação é baseada na confiança mútua, e tanto o parceiro submisso quanto o dominador ficam expostos, se entregam um ao outro. Mas Portugal é sempre alvo da mais profunda desconfiança: de cada vez que faz algo que não corresponde exactamente às expectativas, é alvo de recriminações e obrigado a corrigir o seu comportamento. Por último, as relações sado-masoquistas usam palavras de segurança, isto é, palavras que sinalizam ao parceiro que é melhor parar, que se ultrapassou um limite. Mas para o amante de Portugal, não parece haver limites. Se as medidas propostas violam a Constituição, que se ignore, que se mude a Constituição. Se o que Portugal é obrigado a fazer dói demais, faz sofrer demasiada gente, Portugal que aguente. Uma relação desta natureza deveria poder parar a qualquer momento, a pedido. Mas Portugal não tem o poder de mandar parar. Está inteiramente à mercê do seu amante.

 

Portugal é, portanto, vítima de violência doméstica. E, como é costume nestes casos, é ferido não só no corpo, mas também na alma. Racionaliza o que lhe acontece atribuindo a si mesmo culpas imaginárias, adoptando como seu o discurso e o argumentário de quem lhe quer e está a fazer mal. “Se me controla – pensa – é porque me quer bem; se me domina é porque me ama; só me pondo inteiramente nas suas mãos é que consigo retribuir-lhe o amor que me tem.”

 

É este género de relação que o Governo de Portugal estabeleceu com a potência hegemónica europeia; é neste género de relação que o Governo quer manter Portugal. Portugal, na pessoa do seu Governo, colabora activamente na sua própria tortura e na sua própria destruição. O Governo não o faz, insisto, porque descure, ignore ou despreze os seus deveres enquanto Governo. Pelo contrário, fá-lo na convicção de que é assim que Portugal deve agir para o seu próprio bem. O Governo, portanto, não merece que o odiemos; merece que tenhamos pena dele. Não merece que lutemos contra ele; precisa da nossa ajuda. A única maneira de o Governo, e Portugal, se salvar da relação abusiva em que se encontra aprisionado é voltando a ganhar um pouco de auto-estima, de respeito próprio, enfim, de coragem. Mas para isso é preciso que primeiro adquira um pouco de auto-conhecimento e auto-compreensão: que entenda uma vez mais que Portugal não é um país sem préstimo, mas que tem valor, e que merece ser amado e ajudado por aquilo mesmo que é – sem exigências extremas, sem estar submetido a padrões impossíveis e a regras auto-destrutivas.

 

O Governo é, portanto, inocente nos dois sentidos da palavra. Está livre de qualquer culpa, em virtude da sua própria ingenuidade. Foi esta mesma ingenuidade que fez que se entregasse a si e a Portugal a alguém que nos maltrata – e acabasse por ir colaborando nesses mesmos maus tratos.

 

Ou então fá-lo consciente e propositadamente, para benefício de outros que não aqueles que tem o dever de proteger.

 

Mas não. Isso seria demasiado obsceno para ser verdade.



publicado por Fábio Serranito às 18:23 | link do post | comentar

Terça-feira, 8 de Julho de 2014

 

Não nos deixamos enganar pela realidade.

 

O espírito geral das classes urbanas portugueses mede-se, hoje em dia, com um barómetro. Literalmente, pela pressão. Pressão laboral, social, educacional, corporativa, económica, etc. E à medida que a pressão sobe nestes pontos, perdemos força anímica. Andamos a tentar coisas que se resumem a reabilitar a sociedade e, com ela, a nossa vida. Procuramos na acção política a medida do combate necessário. Das grandes manifestações de rua do início da crise à 'reforma' dos partidos políticos e ao surgimento de novos modelos de participação, tentamos todos ser moderados porque nos ensinaram que é na moderação que reside a virtude e que a democracia é mais ou menos isso: a moderação virtuosa. Apontamos o dedo, ainda hoje, aos exaltados (de esquerda, de centro ou de direita) e exigimos-lhe a justa medida do protesto pela estabilidade das nossas vidas. Recusamos liminarmente os extremismos porque fomos ensinados assim e temos tão bom senso que acreditamos não precisar de mais do que aquele que já temos (Descartes dixit). Andamos, assim, a ser embalados. E o sono tem sido confortável. Se ainda vai sendo é porque, como de qualquer bom sonho, não queremos acordar para a realidade.

 

Todos somos filhos de uma classe sem futuro histórico.

 

A desilusão das forças anti-democráticas no pós 25 de Abril, pelo caminho que a Revolução tomou, em nada tem que ver com os nossos actuais descontentamentos, embora tenham sido a sua expressão primeira. Se, pelo que digo acima, concordarmos que nos adaptamos todos muito bem a um regime social-democrata de índole capitalista (em que o primeira mantinha as aparências do que idealizavamos por princípio e o segundo introduzia o factor da perversão - porque era ele que continha o que desejavamos por ambição), então temos que concluir que nunca fomos, colectiva e individualmente, muito coerentes ou consequentes. Queriamos o melhor de dois mundos e ainda vivemos nessa ilusão. Por isso não temos, enquanto classe, futuro histórico. Porque fomos derrotados pelo individualismo, já não há classes.

 

Nem Sartre nem Aron. Somos todos Glucksmann. Ou como 'estas coisas de ismos já nem querem dizer nada'.

 

Não interessa se antes do 25 de Abril assinamos a folhinha da PIDE. Não interessa se no dia a seguir eramos perigosos maoistas. Até nos rimos dessas coisas. Somos, enfim, filhos dos nossos tempos. O que equivale a admitir que teriamos sido fervorosos inquisidores, perigosos jacobinos a espalhar o terror ou nazis, estalinistas ou trabalhistas consoante o espaço geográfico. Hoje em dia somos pela 'coisa'. Hoje em dia somos os tais 'nacionais-porreiristas' em que à força de sermos contra tanta coisa acabamos por ser a favor de coisa alguma. Ou, sendo a favor de tudo (regra geral, do último que fala), estamos pela situação. Estamos então ali no meio, como o Glucksmann, a juntar as mãos de Sartre com as de Aron. Só que hoje em dia já não existem nem Sartres nem Arons, apenas Glucksmanns. Hoje em dia reinam, bicéfalos, o pragmatismo e o situacionismo.

 

O sol brilhará para todos nós!

 

Os amanhãs que cantam chegaram há muitos anos. Todas as manhãs são boas para acreditar no sonho americano dum enriquecimento rápido e sólido. A revista Kapa pode ter acabado mas nunca houve tanto Yuppi a bater punho. Com empreendedorismo e mérito o céu é o limite. O sonho vende-se como a Coca-Cola e vicia como o tabaco. Em alternativa renova-se a esperança a cada raspadinha ou a cada sorteio do Euromilhões. E assim, construimos uma colectividade de individuos que ficam à espera da sua vez. Já todos nos julgamos apenas credores da sociedade. Mesmo os que fazem política e se julgam, de algum modo, os únicos intervenientes dignos na coisa pública.

 

Paris brûle-t'il?

 

Mas não nos enganemos no que concerne a perspectivas mais ou menos pessimistas da realidade. As coisas sempre foram mais ou menos assim. O famoso 'pantano lamacento' ou como Pepe prefere olhar para o esgoto do que para as gordas dos jornais. Mas também é escusada a perspectiva candida do bem que, individualmente, as pessoas bem intencionadas acreditam acrescentar à política. São absolutamente desnecessárias e esse exercício só as ajudará a adaptarem-se, mais rapidamente, à realidade. É, como foi para os nossos pais, o mesmo que ter ido à tropa. De resto duvido que os sistemas se regenerem. O nosso, está claramente a colapsar. Paris, não se enganem, já arde.



publicado por José António Borges às 12:20 | link do post | comentar

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