Não acredito em deuses, acho que nunca vou acreditar, e, sobretudo, não acredito num deus pessoal, antropomórfico, como o que nos é o proposto pelos católicos. Além disto, a história da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) de conservadorismo social, intolerância e aversão à ciência, tendo estado quase sempre política, filosófica e cientificamente do lado errado de todas as batalhas pelo progresso (e pela defesa dos mais fracos, que deveria proteger), fazem com que tenha sido sempre muito céptico em relação a toda a aparente abertura do novo Papa.
Hoje, acho que fui finalmente convencido. Não, não tive uma revelação, nem passei a acreditar num deus, mas acho efectivamente que este Papa é capaz de estar do lado certo da história. Hoje, o Papa retirou a Igreja de onde nunca devia ter entrado, recusou o literalismo bíblico, rejeitando que um livro com quatro mil anos deva servir como interpretação literal do mundo natural, afirmando que Deus não é “um mágico com uma varinha de condão” e que a Igreja não deve rejeitar a Teoria da Evolução ou a do Big Bang. Acabou com a margem para a tolerância das “pseudo-teorias” do criacionismo ou do ‘design inteligente’.
Depois da abertura em relação aos homossexuais e aos tipos não tradicionais de família, bem como de um retomar efectivo das preocupações sociais – verdadeiramente sociais, que passam pelos direitos das pessoas e não pelo assistencialismo controlador (que tanto tem sido a tradição) – pela ICAR no consulado de Francisco, a aceitação da supremacia da ciência, no que ao mundo natural diz respeito, retira a Igreja, pela primeira vez, do pensamento medieval que a tem caracterizado.
A escolha de uma interpretação simbólica, talvez mais profunda, para a Bíblia centra a Igreja na sua função de instituição que visa a consumação dos fiéis com a sua fé, e a essa, por não ter que ver comigo, eu não tenho nada a objectar.
Francisco, enquanto Bispo de Roma, sucessor de Pedro, talvez seja um herdeiro (pela primeira vez?) à altura do antecessor de Pedro, seguindo o seu exemplo e, se o conseguir, fazendo uma verdadeira revolução dentro da Igreja. Tal como o antecessor de Pedro, pretende renovar uma religião com mais de dois mil anos de tradições arcaicas, humanizando-a e centrando-a na defesa dos mais frágeis e na sua relação com o seu deus, não pela exclusão, mas pela inclusão.
Se será bem-sucedido, não sei. Não será tarefa fácil e aquele a quem me referia atrás consta que era perfeito e nem assim conseguiu ter grande sucesso na sua época. Mas que promete também ficar para a história, não tenho grandes dúvidas.
Confesso que gostava que os apoiantes de Seguro defrontassem os apoiantes de Costa em Congresso, devia ser essa a função do Congresso, principalmente tendo em conta que já nem o Secretário-Geral é nele eleito. Não acho desejável que tantos apoiantes de um e outro lado, que durante 4 meses divergiram de forma tão radical e em questões tão fundamentais, não confrontem as suas divergências em Congresso, frente a frente, de forma clara. Não acho desejável, mas acho compreensível.
Não culpo pela ausência desta clarificação os partidários de um ou outro lado, “O homem é ele e a sua circunstância” e, neste caso, parece-me que é sobretudo a circunstância que assim o determina. Essa circunstância foram as eleições Primárias.
As primárias foram, todos o afirmam, um enorme sucesso. Correram muito bem, demasiado bem, na minha (possivelmente parcial, uma vez que não sou, nem nunca fui, adepto do modelo) opinião.
Correram demasiado bem porque, mesmo que eu tenha querido muito ter Costa na liderança do PS, nunca quis ter Costa, nem ninguém, a liderar o partido com uma legitimidade e, portanto, um poder absoluto, é isso que hoje acontece.
O Partido Socialista terá cerca de 100 mil militantes, a avaliar pela história recente do partido, num cenário de disputa eleitoral (o que não será o caso do próximo Congresso), votariam para eleger os delegados ao Congresso Nacional no máximo 40 mil militantes. António Costa foi escolhido numas eleições primárias em que participaram quase 180 mil pessoas, das quais 120 mil deram-lhe a sua confiança. Neste momento e, presume-se, a partir de agora, qualquer líder escolhido em primárias contará sempre com uma muito maior legitimidade política, decorrente de uma maior legitimidade eleitoral, do que o órgão máximo do PS.
Agora sim os líderes serão inamovíveis. Qual poderia ser o Congresso, eleito por 30 mil pessoas, que poderia ter força política para eventualmente pôr em causa uma liderança legitimada pela confiança de 120 mil cidadãos?
Com a introdução das eleições directas, os Congressos já viram o seu peso e a sua utilidade substancialmente reduzidos (o que é, na minha opinião, muito negativo, como já expliquei noutro texto). Com a introdução do modelo de primárias, quando ligado umbilicalmente à liderança do partido, que é o caso, os Congressos ficarão definitivamente reduzidos a, utilizando a expressão que uma vez o Pedro Delgado Alves usou para escrever alguns congressos, uma espécie de ‘congrício’: formalmente um congresso, na prática um comício.
Assim sendo, os Congressos mais não serão do que um arcaísmo formal, herdado de tempos anteriores, mas já sem grande utilidade. Isto não seria muito mau, mas há outras consequências funestas desta alteração.
Desde logo, a questão que eu comecei por colocar sobre a possibilidade de se porem em causa as lideranças, o que já é suficientemente mau, mas não só. Sem disputas em Congresso (e este era um problema que já existia desde a introdução das directas, sendo agora ‘apenas’ agravado), as eleições têm a tendência para se tornarem crescentemente pessoalizadas, desligando-se de uma verdadeira discussão de projectos que, sendo também constituídos por pessoas, não podem nunca ser reduzidos apenas à sua liderança. Não podemos queixar-nos (incluindo aqui toda a comunicação social e os comentadores que tanto o fizeram na campanha para as eleições primárias) da ausência de diferenças programáticas se, pelas próprias regras instituídas, fomentamos um modelo em que se foca a escolha apenas na diferença de personalidades, porque são apenas essas que vão a votos no momento mais importante.
Por último há uma outra desvantagem, que tem também que ver com o universo eleitoral das primárias: o esvaziamento da participação partidária. Se o sistema de eleição se torna mais pessoalizado e nacional, contrariando as dinâmicas de grupo e negociação anteriormente dominantes, ao mesmo tempo que se retira o direito exclusivo de voto aos militantes na escolha da liderança, então, além de se esvaziar o Congresso, esvazia-se por completo, em termos de influência, a militância partidária. Qual será a função real de ser militante partidário no cenário que se desenha é para mim uma completa incógnita, mas, tendo em conta que não há nenhuma Democracia funcional sem partidos e não há partidos sem militantes, é uma incógnita preocupante.
Temo bem que as primárias façam escola no nosso sistema político e que isso possa não ter bons resultados, espero estar enganado.
Rui Ramos conseguiu, na sua última crónica no jornal oficial do neoliberalismo, superar-se a si próprio, atingindo um nível de desonestidade intelectual que nem dele eu esperaria.
Nela, critica as declarações, conhecidas esta semana, em que Ferro Rodrigues afirma que “Não se pode, evidentemente, ao mesmo tempo, defender o progresso do Serviço Nacional de Saúde, defender o progresso da escola pública, defender o progresso na capacidade da proteção social e depois ter promessas desbragadas em matéria de diminuição dos impostos”.
Para mim, Socialista que sou, estas afirmações fazem imenso sentido e são uma clarificação importante sobre o caminho que a Esquerda democrática tem de percorrer se quiser verdadeiramente inverter o domínio do neoliberalismo na nossa sociedade. Compreendo que o Rui Ramos, defendendo o que defende, não concorde com isso e acredito que existam argumentos válidos em sua defesa, mas não os que utilizou. Nesses, nem ele acredita.
Rui Ramos estabelece uma identidade entre austeridade e a carga fiscal, dizendo depois que “o que Ferro Rodrigues nos quis dizer é isto: ou mantemos a austeridade (o “assalto fiscal ao trabalho”), ou não há Estado social”, ou seja que, para o PS, “o Estado social é a austeridade” (Rui Ramos depois afirma que não tem de ser assim, dando o exemplo do estado social existente durante o tempo de Marcello Caetano, mas deixemos as simpatias dele pelo anterior regime de parte). Numa conversa de café seria admissível ouvir este argumento de um qualquer chico-esperto, mas não de alguém que é historiador e doutorado em Ciência Política, nesse caso é só desonesto.
A austeridade não é só aumentos de impostos. A austeridade é a consolidação orçamental que se faz através do aumento da carga fiscal (e há muitas formas de fazer esse aumento, diferentes da que foi seguida) associado a um corte nas funções e na despesa do estado, não esquecendo a componente de compressão salarial (pela via do aumento do desemprego ou das chamadas ‘reformas estruturais’, como são da diminuição dos direitos laborais), indispensável à melhoria da competitividade externa.
Se desconsiderássemos, como faz Rui Ramos, todos os outros factores que referi e entendêssemos que a austeridade significa só aumento de impostos (ou manutenção de impostos altos, que é isso que Rui Ramos lê nas afirmações de Ferro Rodrigues) então a Dinamarca, a Finlândia e a Suécia estariam entre os campeões da austeridade na Europa, com cargas fiscais de 56.3% (do PIB), 56.0% e 51.6%, respectivamente, quando em Portugal ela é de 43.7%.
Eventualmente, Rui Ramos, no seu fervor neoliberal, poderia, não sendo economista, esquecer tais factos. O que é particularmente ridículo é que, sendo historiador, ignore o período que se seguiu à grande depressão nos EUA e à Segunda Guerra Mundial na Europa, em que os governos de esquerda promoveram significativos aumentos de impostos e de despesa pública, não como política de austeridade, o que é evidente para qualquer pessoa séria, mas exactamente para combater os efeitos das crises económicas e das políticas de austeridade que lhes antecederam.
Não vou sequer, porque não vale a pena, alongar-me sobre o facto de a mesma pessoa que acha que “Quando comparamos a ditadura salazarista com as suas contemporâneas, a contabilidade repressiva é modesta” poder afirmar que para os outros, supõe-se pelo contexto que seja Ferro Rodrigues e o PS, “o Estado social vale sobretudo como um instrumento do domínio da sociedade pela oligarquia política”; já estamos habituados a estes devaneios do historiador oficial da direita liberal na economia e conservadora na democracia. O que tem de se referir é que, vindo de alguém com o currículo e o percurso de Rui Ramos, nada disto é inocente, é uma tentativa consciente de enganar as pessoas com recurso retórica elaborada e a uma suposta reputação ‘académica’.
O que é efectivamente grave é que continue a ser dada credibilidade a gente que demonstra tamanha falta de honestidade intelectual, estando disposta a tudo, mesmo a enganar deliberadamente os outros, para fazer avançar as suas opiniões políticas.
"18.
Sim, foi essa
A primeira miséria, a deserção
Dos deuses. A segunda, a sua morte,
Já na morte de Pã anunciada
Pelo lamento dos bosques, o clamor
Lutuoso das Ilhas do Egeu.
Esse grito o escutou o outro Friedrich,
Dionysos de seu nome, o europeu,
O anunciador, o que caminha
Sobre águas estagnadas e parece,
Ao afundar-se, desenhar no lodo
Um mapa para o qual não há leitura.
19.
A segunda miséria: não a morte
Do deus crepuscular, do invasor
Que proibiu a imaginação
E tirou à tragédia dignidade -
Pois muito longe de morrer está esse.
A morte, uma falência quotidiana
Da limpidez, da arte e da divina
Coloquialidade com o mistério
E com o semelhante, a que extinguiu,
Como um sopro de fogo na planície,
Ao mesmo tempo o vivo e o seu rasto.
20.
E veio outra miséria, em interlúdio:
A miséria da interpretação
Que tudo trai. Os textos, os tão belos
Textos do ódio e da melancolia
Carragavam os sacos dos soldados
Como pães doces, abolorecidos,
Alimentavam quem? Persas, de novo.
Persas vindos do Norte, equivocados
Com o som do poema, com a ira
Formosa do poema.
23.
A terceira miséria é esta, a de hoje.
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que se entregam,
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua."
In 'A Terceira Miséria', de Hélia Correia
Vivo constantemente com a sensação de que é sempre possível viver num melhor e mais perfeito Estado democrático, numa melhor e mais perfeita república, aliás, julgo que o republicanismo também implica essa inconformidade, esse incomodo, essa busca, e portanto, nada melhor do que evocar o lamentável Presidente da República que temos, e ainda mais, os aspetos que me levam ao incomodo, à inconformidade, e a vontade que desapareça do lugar que ocupa, para novamente escolhermos. Considero que o atual ocupante do Palácio de Belém é uma degenerescência do regime democrático, no seu caráter de imperfeição - como diria Churchill -, isto apesar de resultar da escolha popular democrática. Alguém que teima em considerar-se a si e aos seus acima dos cargos que ocupam, e de afirmar tacitamente que chegou ontem, não serve a República e está longe de a considerar. Que desocupe o lugar é o meu desejo para este dia de aniversário da República.
Eça faria dele uma personagem menor nos seus romances, e a caricatura de uma certa classe do país, Bordalo Pinheiro poria a arte das Caldas e a imagética caricaturista no bom ofício da crítica social. Nem precisaríamos de um qualquer artista de Barcelos, que em vez de se ocupar de galos em barro, contribui, provavelmente por desconhecimento e falta de informação, para a promoção de quase 50 anos de um tempo que nunca pertenceu à República! Viva a República!