A minha leitura diária da informação ontem foi abalada pelas palavras concomitantes da ofegante e triste respiração do vice-presidente e agora presidente interino da República Bolivariana da Venezuela: Nicolás Maduro. A notícia, essa era previsível apesar daquele recôndito espaço de esperança que guardamos sempre na alma. Aquela réstia libertária perante o casulo da inevitável enfermidade. Morreu Hugo Chávez Frías, a figura que personalizou o bolivarianismo socialista, a ânsia de liberdade e independência, assim como a justiça social. Um projecto novo a dar os primeiros passos como uma criança. Uma criança que sofreu quedas e se levantou novamente. Como uma criança também se magoou. Mas assim como uma criança, mantinha o entusiasmo e fazia progressos inolvidáveis durante o seu crescimento.
Esta penosa notícia marcou o mundo. Levantaram-se os adeptos fervorosos do chavismo e os críticos cegos. Pelo meio os observadores objectivos da realidade venezuelana foram distinguindo o que de bom e mau foi realizado. Da esquerda à direita haverá uma panóplia de razões para criticar o regime venezuelano. Eu próprio procuro fazê-las no sentido em que devemos duvidar de tudo como apontava Marx. Não era um regime de consensos, era um regime político e em política nunca será desenhado um paradigma de governação inerte e imune.
O retrato que quanto a mim melhor resume os anos em que vigorou o projecto socialista de Chávez é o Golpe de Estado ocorrido a 11 de Abril de 2002. Todos os seus intervenientes são como que tipos-sociais vicentinos, neste caso venezuelanos. De um lado temos o grande patronato que se esconde na oposição e procurou reagir à política de redistribuição da riqueza do petróleo, assim como às políticas sociais que incluíram entrada de capital do Estado em sectores económicos que afrontavam os grandes empresários como a banca ou o comércio a retalho alimentar. A própria reforma agrária contrariou muitos interesses instalados. Estes foram os autores do Golpe, fazendo uso dos meios de comunicação privada e de uns quantos militares oposicionistas. Do seu lado estavam a Espanha e os Estados Unidos da América, potências que viram os seus privilégios económicos na região serem combatidos. Em defesa da Constituição Bolivariana estava a camada pobre, a maior diga-se, da venezuela que usufruiu dos progressos proporcionados pelas missões sociais e os investimentos na educação e na saúde. Uma população que finalmente se viu livre de uma lista interminável de governantes que não souberam aproveitar o beneplácito eleitoral para dirigir um país de acordo com os seus programas sufragados. Os apoiantes de Chávez juntamente com os militares que o apoiavam fizeram questão de resgatar o Presidente e reelegê-lo sucessivamente.
Todavia, a espada de Bolívar não se limitou a desferir golpes contra a oligarquia interna. Também no plano internacional foram dados passos suficientemente importantes no caminho da contra-hegemonia diante de um sistema internacional ameaçado de unipolaridade estadunidense apoiada pelas potências ocidentais. Neste sentido, Hugo Chávez desenhou uma política multi-lateral que, no complicado jogo de xadrez externo, procurava unir as potências consideradas ameaçadoras para o governo americano, apesar das diferenças ideológicas. Por outro lado foi determinante para principiar um projecto de comunidade política sul-americana. Neste âmbito se criou a ALBA, comunidade de países bolivarianos da América e avançaram projectos nos mais variados domínios como a TeleSur, enquanto permanece o diálogo sobre um hipotético Banco do Sul.
Chávez foi um líder em tempos de indigência mundial. Um líder num mundo de lideranças medíocres e pouco imaginativas. Um líder que personalizou excessivamente o seu regime, podendo Nicolás Maduro pagar caro essa herança. Fortaleceu demasiado os poderes a si conferidos lançando névoa sobre a separação de poderes e independência da Justiça. Porém, reduziu assimetrias, ligou povos e recebeu amor dos que acreditaram no seu projecto político. O autor da doutrina do Socialismo século XXI, Heinz Dieterich, lançou críticas pela estaticidade e os poucos avanços em direcção a uma política com princípios anti-capitalistas. São críticas legítimas e dignas de reflexão pela esquerda, sem dúvida. Mas deixo a questão: o mundo seria o mesmo sem Hugo Chávez? O mundo do subprime, do neocolonialismo, dos interesses do capitalismo financeiro, dos saques a juros hediondos e da depradação dos direitos sociais e económicos conquistados duramente pelos trabalhadores e trabalhadoras. Tenho a certeza que a História dará uma resposta e fará a sua justiça.