Não me vou alongar muito em comentários à decisão, saudável, do Tribunal Constitucional. Ainda assim, não posso deixar de dizer que, tal como tantos outros, acho que há mais normas que deviam ser consideradas inconstitucionais. O entendimento do Tribunal Constitucional foi diferente e eu, ao contrário do Governo, não vou dedicar demasiado tempo, como podia, a falar sobre o Tribunal Constitucional ter tido um comportamento condenável ao subalternizar a nossa Constituição, até certo ponto, em relação a um acordo internacional que não altera a estrutura jurídica e Constitucional da República. Se não fosse por especial consideração das circunstâncias específicas que vivemos (não atendíveis para mim, por razões de forma e de substância), estou convencido que mais normas teriam sido declaradas inconstitucionais. O meu maior regozijo é por, de novo, os votos dos Juízes não seguirem lógicas partidárias, eterno fantasma dos que vêem a legitimação democrática dos Juízes do TC como uma forma de partidarização do tribunal, felizmente refutada uma e outra vez.
Muito mais importante do que dissecar o acórdão do TC ou do que analisar politicamente uma decisão que não é política, como tenta fazer o Governo, o mais relevante é perceber a situação em que nos encontramos. Este texto é essencialmente sobre a posição em que ficámos após o chumbo, seguir-se-á um outro sobre a reacção do Governo.
O meu entendimento, ao contrário do que parece ser a opinião dominante, é que esta decisão do TC representou a melhor oportunidade que o Governo podia ter tido. Oportunidade perdida, claro está, como poderia ser de outra forma com esta gente?
Vejamos bem toda a retórica do Governo (narrativa não, que é coisa de Socialistas, toda a gente sabe).
Apesar de uma prestação económica ‘abaixo do esperado’, o nosso ‘processo de ajustamento’ está a correr bem, todas as avaliações da Troika até agora foram positivas, portanto só pode mesmo estar a correr bem. Também sabemos, porque o Governo no-lo repete diariamente, que temos feito um extraordinário trabalho de credibilização junto dos agentes internacionais. Este trabalho já nos está a permitir e irá certamente permitir no futuro, com redobrada confiança dos investidores e parceiros internacionais, negociar condições mais favoráveis que permitam conciliar a ‘necessária consolidação orçamental’, as ‘fundamentais reformas estruturais’ (leia-se transformação da República Portuguesa em Poortugal, Inc) e o crescimento sem o qual não sairemos do abismo (para não lhe chamar buraco, a bem da neutralidade) em que os Socialistas esbanjadores nos deixaram, apesar de sempre terem gasto uma menor percentagem do PIB, ele próprio significativamente inferior, que os austeros Alemães Merkelianos.
As coisas têm corrido tão bem que a República conseguiu, há pouco mais de dois meses, fazer uma emissão de dívida pública com juros que, apesar de estarem bastante longe do desejável, estão dentro de padrões comportáveis de uma forma transitória. Daqui só podemos depreender que as amortizações de dívida (e concomitante emissão de nova dívida, para se refinanciar a dívida vencida, porque parece que alguém se esqueceu de explicar aos governos de todo o mundo que a dívida não se gere, paga-se), que tanto medo parecem causar, não são preocupantes porque, no limite, já nos conseguiremos refinanciar, ainda que a preços acima do desejável. Isto só não seria verdade se o regresso ensaiado aos mercados não tivesse passado, não de um ensaio, mas de uma encenação. Impossível, sigamos…
Tendo em conta tudo isto, o chumbo de parte das medidas de aumento de impostos… desculpem, corte de salários… peço perdão, redução dos gastos públicos, que o tribunal Constitucional decretou, eram a melhor oportunidade que o Governo tinha para exigir a flexibilização das metas que era evidentemente necessária. E era necessária não só para o país, mas para o próprio Governo. O acelerado estado de decomposição do Governo e da maioria PSD-CDS não será invertido por uma mera mudança de caras, sem que seja acompanhada de uma alteração do rumo político. Nem é sequer discernível qual será a capacidade de Passos Coelho, sem a referida alteração de rumo, de recrutar para o seu Governo gente que o credibilize, para que a remodelação que se antecipa seja mais do que uma mera dança de cadeiras com meia dúzia de promoções à mistura.
Sejamos claros, mesmo adequando a narrativa fantasiosa do Governo à realidade do país, se o Governo não conseguiu até hoje a credibilidade que nos garante ser imprescindível para renegociar favoravelmente o nosso ajustamento (e não o nosso programa de ajustamento, porque esse termina em 2014 e ninguém com meio neurónio acha que, seguindo a estratégia do Governo ou qualquer outra, o ajustamento acaba em 2014), ele nunca a irá conseguir, porque o país implodirá antes disso. Só não implodirá se, como se espera, o Governo implodir ainda antes.
Acresce a isto que a anulação destas medidas seria, neste momento, a única esperança do país de evitar uma catástrofe económica de que já temos tido a antecâmara nestes últimos dois anos. Sim, podem-me chamar o que quiserem (a minha preferência vai para Keynesiano, mas se quiserem também me podem chamar simplesmente realista), mas a nossa única esperança era exactamente que não se compensasse a quebra de receita resultante da decisão do TC e ela fosse usada como estímulo à procura. A derrapagem associada à anulação destas medidas seria, com toda a probabilidade, compensada por uma menor derrapagem resultante do aliviar da recessão auto infligida que vivemos (muito além das previsões económicas do Governo que só podem ter sido feitas por alguém depois de tomar peyote). Assim, o efeito real no défice seria significativamente inferior, por via de uma menor diminuição da procura interna e do minorar das catastróficas consequências da política orçamental seguida. Podia ser a diferença entre o PIB cair 1.5% ou 3% e entre o desemprego ser 18,5% ou mais de 20%, não é brilhante, mas já é qualquer coisa.
Por fim um chumbo por parte do tribunal Constitucional era a melhor de todas as justificações para que chegarmos à Europa e dizermos: «Meus caros, temos feito tudo o que nos têm pedido e ainda mais. O caminho que tínhamos não pode ser executado dados os nossos constrangimentos Constitucionais. Não é possível, social, económica ou politicamente, aplicar neste momento medidas adicionais. Precisamos de flexibilizar as metas». O Governo não precisava de abandonar os propósitos, não poderia ser acusado de falta de vontade e não haveria forma de contornar a situação. Isto se houvesse vontade política de aplicar a tal ‘credibilidade conquistada’. Não nos esqueçamos que o Orçamento que estava feito tinha a concordância dos nossos Credores, eles não nos pediram para fazer outra coisa, pediram isto. Não é possível, logo temos de renegociar. Sim porque a negociação é uma possibilidade real, não é só para gigantes Europeus como a Espanha, a Itália ou… Chipre!
Afinal de que nos serve a credibilidade do nosso Frankfurt boy (que Chicago já está muito fora de moda) se ela não pode ser usada? De troféu?