Nós, que somos lobos, uivamos à passagem das leis pelos nossos montes e que arrancam a eira e a leira por debaixo do nosso velho sacho, que erguemos outrora contra os administradores dos Serviços Florestais e os seus guardas capangas que vieram em carrinhas de Lisboa com os mapas e as réguas nas mãos. Hoje, voltamos a uivar com os índios da Amazónia, que terão os seus ancestrais territórios inundanos pelas barragens que se mandarão construir a partir do planalto de Brasília que, por ser planalto, só vê a água lá em baixo sem nunca se afogar. Como em Lisboa outrora, quando o plano nacional de barragens destruiu e os Serviços Florestais roubaram. Os povos frágeis tem o dever de levantar as suas gadanhas quando o poder oprime roube e tiraniza. Nós, que somos lobos, uivamos à passagem dos tiranos. Eles que saibam que um dia desceremos das montanhas rochosas onde afiamos as garras nas escarpas rochosas de uma vida dífícil e tanto mais quando nos solidarizamos com os infortúnios dos nossos irmãos. Da Palestina ao Sahara Ocidental passando pela Amazónia e por Atenas, mas voltando rápido para casa, porque somos cá igualmente precisos.
«-Para Arcabuzais, Corgo das Lontras, Ponte do Junco, Azenha da Moura... a serra é berço, paládio e até altar. Os filhos, julgam Vosselência que eles os fazem na cama, debaixo da fumosa e feia telha-vã? Não, senhores, os filhos fazem-nos na serra quando a queirós e a giesta estão em flor.
Estrugiu uma gargalhada no friso de Zurbaran. Muito tenso, o engenheiro Lisuarte Streit deu uma topetada no ar, desdenhoso:
- Tudo isso é lirismo e do mau.
- De facto é lirismo e do mau - replicou o advogado, com um sorriso levemente zombeteiro, sobre o bonacheirão, a quebrar o gume cortante das palavras, não fosse picar-se o urso. - A prosa e da boa está nas coimas que os Serviços Florestais hão-de trazer aperradas contra os transgressores e nos agravos que o labrego, hoje livre de percalços, terá de suportar dos que naturalmente usam a tiracolo uma carabina de guerra. Prosa e da boa (...) é também a de dar o seu tiro aos coelhos, às lebres e até aos lobos, mesmo que apoquentem os currais, para que o senhor almoxarife possa proporcionar aos figurões de Lisboa, dos Serviços, dos Ministérios, batidas principescas... Sei isso tudo.»
Aquilino Ribeiro, 'Quando os Lobos uivam'