Assim que reuniu os seus homens, Salgueiro Maia explicou deste modo a razão para o golpe: «Como todos sabem, há diversas modalidades de Estado. Os estados sociais, os corporativos e o estado a que chegámos”. Um Estado disfuncional que congregava o pior do que havia sido o Salazarismo com o descontentamento de algumas figuras do regime. A Primavera Marcelista não passara de uma fraude e o carácter persecutório do Estado-Novo não havia esmorecido. A atmosfera era de mudança e soava no ar que a qualquer momento a História faria a sua parte. Ninguém foi feito para sofrer e ser oprimido. Todos ansiamos a liberdade, a verdadeira promessa da política segundo Hannah Arendt.
O Governo a que chegámos recorda-nos um pouco esse anseio. Perante os cortes nas funções do Estado, a redução salarial, os despedimentos, as privatizações de serviços próximos dos cidadãos como é o exemplo dos CTT ou a crescente precarização de todo o tecido laboral é criado um clima de medo próprio de uma democracia frágil e titubeante em que se vive o dia-a-dia sem pensar no dia de amanhã. É a democracia do ensino público crescentemente elitizado e depauperado, da saúde pouco acessível e vista como desperdício de dinheiro público, da segurança social vista como um luxo; em suma, dos direitos adquiridos e não conquistados.
Mas quem nós pensamos que somos para querermos viver dignamente sem honrar os nossos compromissos? Em primeiro lugar está a nação. Sim essa entidade abstracta que legitimou os constantes atropelos do tempo da Outra Senhora. Mesmo que essa nação esteja subalternizada, de joelhos perante um memorando que ninguém votou ou se manifestou a favor. Se queres fazer greve, eles pensam alterar a lei. És professor ou professora e queres juntar-te, eles impõem serviços mínimos e a requisição civil. O Tribunal Constitucional chumbou o corte de subsídio de férias mas eles não querem devolver. És negro ou negra e moras num bairro? Uma ameaça resolvida com o cano da arma. Ai a nação, a nação, essa entidade que pode inclusive pisar direitos e leis, mesmo a Lei Máxima. Não há lei senão a lei dos mercados.
Observando o país, perguntamo-nos se o Presidente da República pensa zelar pelo regular funcionamento das intituições democráticas. Pelos vistos ele apenas contribui para a sobrecarga de exigências ao sistema político e, nos tempos livres, manda julgar sumariamente quem o manda trabalhar. Talvez não tenha percebido que o estado a que chegámos limita-nos no campo das escolhas, tal como limitava aqueles que viveram os dias de Abril em 1974.