Não nos enganemos, vivemos uma patologia internacional e sistémica que nos oprime em nome de uma agenda política, económica e financeira bem definida. Os regimes apresentam-se frágeis e titubeantes, os pilares da res publica foram derrubados e somos governados de acordo com a força das circunstâncias. Vivesse hoje Rousseau e considerava que nem o voto nos torna verdadeiramente livres por um dia. O sonho de Monnet virou um pesadelo e Miguel de Vasconcelos hoje estaria orgulhoso dos governantes que o cumprem em cada país. Quem votou em Passos Coelho, votou em Selassie e condenou este país ao subterfúgio do memorando. Mas de que falo eu? Tão somente da cosmopolis. Não a dos concorrentes e clientes mas a do pilar da solidariedade, a do domínio público consubstanciado numa esfera pública. A democracia de iguais idealizada por Arendt. Falo da legitimidade popular adormecida por um discurso de Gaspar e do branqueamento das raízes da crise. A crise é internacional, porra.
A multidão saiu à rua. Ninguém está muito convencido de que viveu acima das suas possibilidades num país com um número taxativo de pessoas a viver abaixo do limiar da pobreza. Acusar os portugueses da dívida privada que se sobrepõe à dívida pública é como alegar que o subprime não se deveu ao casino das intituições financeiras. Esse discurso está gasto e se os nossos bancos fossem sólidos como advogavam não teriam necessitado da recapitalização do Estado nem de comprar os títulos de obrigações da dívida portuguesa a juros elevados quando são financiados a 1% pelo BCE. Muitos, excepto os fanáticos troikistas, também não compreendem a razão que leva a que o sistema financeiro internacional pouco tenha mudado após a última grande crise e nenhum quadro da Goldman Sachs ou da Merrill Lynch esteja neste momento a almoçar na cadeia. E de como a primeira referida ainda conseguiu estender os seus tentáculos a governos europeus. E as agências de rating? Aquelas que dotavam os CDO’s tóxicos de triplo A e agora nos transportam num saco de lixo? E a crise das dívidas soberanas não foi alimentada por bancos europeus que agora nos chamam de PIGS? Ouço a palavra «responsabilidade» de um modo banalizado, quando nenhum dos agentes citados foi chamado a depor e ainda lucram com as reformas e salários dos países soterrados em números iníquos que pouco foram investigados. Há quem tenha a lata ainda de argumentar que Portugal tem de agradar os mercados. E eu que pensava que era a classe política que tinha de administrar bem a pólis para agradar os cidadãos. Imaginei que a concepção de poder democrático era ascendente e não descendente. Que o contrato social determinava que o Estado servia a comunidade e não deuses pagãos que necessitam de sacríficios para serem alimentados.
A crise não é abstracta. Tem nomes e responsáveis. As suas vítimas também, independentemente da sua nacionalidade. O inimigo é transnacional e por isso a oposição também terá de se configurar desse modo. Só temos duas vias de lidar com o contexto capitalista actual numa dialéctica aberta: ou assumimos o nosso compromisso na história de mudarmos o paradigma; ou refugiamo-nos na técnica, na rotina e na mediocridade. Precisamos dos outros para sermos livres e por isso assumo a minha identidade como português, espanhol, irlandês e grego entre tantos outros povos explorados. A luta é internacional, porra.