Sábado, 17 de Novembro de 2012

            Resisti durante algum tempo a aceitar o convite destes meus Camaradas para fazer parte desta alcateia por achar que não tenho tanto assim a acrescentar à discussão blogosférica que se faz actualmente. Sigo regularmente alguns blogues de Esquerda (sendo os que sigo com maior regularidade: o Arrastão, o Banco Corrido, o Jugular, o Esquerda republicana, o ladrões de Bicicletas, o The Conscience of a Liberal e o Aurora do Porto) que, em traços gerais, reflectem a minha visão sobre a Sociedade.
            No entanto, e como brilhantemente escreveu o Pedro Delgado Alves a propósito da manifestação de 15 de Setembro, “Estes não são dias como os outros. Não são dias de ficar em casa, não são dias de deixar na mão dos outros a construção do futuro, não são dias para privar a República das nossas vozes”, hoje todos temos a obrigação de dar o nosso contributo para o aprofundar das discussões que são fundamentais para o nosso futuro. A minha participação neste blog será, assim, uma das faces do contributo que entendo ser minha obrigação dar.

 

            Posto isto, devo dizer que pesaram também na minha decisão de embarcar nesta ‘aventura’ alguns acontecimentos recentes, nomeadamente os incidentes que ocorreram junto à Assembleia da República na última Greve Geral. É sobre esses acontecimentos que escrevo este meu primeiro texto e faço-o porque tudo nestes acontecimentos foi absolutamente lamentável, começando pela atitude dos manifestantes (os das pedras não a maioria, pacífica, dos manifestantes) e acabando nas reacções das autoridades, passando obviamente pelas atitudes das forças de segurança.

 

            Primeiro de tudo deixem-se salientar aquela que é, tenho noção, a opinião mais controversa que exponho neste texto. Tenho ouvido e lido muitos comentários afirmando que a violência é inaceitável, que o recurso à violência é a arma de quem não tem razão (ou que o uso da violência retira essa mesma razão) e outros chavões do tipo; não sobre este caso em concreto mas em abstracto e para todas as situações (não ouvi, maioritariamente, dizer que neste caso a violência é inaceitável, ouvi dizer que a violência é inaceitável). Discordo completamente, e acho uma profunda hipocrisia, que se afirme que em qualquer circunstância a violência é sempre errada e retira razão a quem a usa (não comecem já a berrar mentalmente comigo, leiam até ao fim).

            A violência é justificável, ou não, consoante as circunstâncias. Todos nós, de uma forma ou outra, nos revemos em algumas atitudes violentas, muitas até da parte de grupos sem legitimidade legal para usarem a violência (sendo que os únicos que a têm são as forças de segurança e as forças armadas). Quem se revê na Revolução Francesa, na Revolução Americana, nas Guerras Liberais, na Revolução Republicana (e no Regicídio) e até no 25 de Abril, que sendo um excelente exemplo de uma revolução não violenta tinha todo o potencial para ser violento, revê-se de alguma forma em atitudes violentas, frequentemente contra o poder instituído, e não pode, portanto, afirmar que a violência dos Cidadãos é sempre, em todas as situações, errada.

            A violência contra as autoridades é legítima quando ela é uma insurreição ou revolta contra um poder opressor (seja qual for a forma de opressão) ou ele próprio violento e quando tem o propósito, não de ser gratuita, mas de derrubar um regime opressor (ou de se revoltar contra ele até que recue), este manifestamente não era um desses casos.

            Assim, ainda que os desacatos que ocorreram, estes em específico sublinho, sejam completamente inaceitáveis, isso não nos pode permitir afirmar que os Cidadãos não têm o direito de se revoltarem violentamente contra um regime que seja opressor, está demonstrado pelo menos desde Hobbes e Locke que têm.  Afirmar semelhante coisa é retirar legitimidade, por exemplo, a todos aqueles que no passado recente derrubaram ditaduras, frequentemente com violência, na chamada Primavera Árabe (e na altura aplaudidos pela maioria dos que agora dizem ser inaceitável qualquer tipo de violência).

            Na minha opinião nada disso, felizmente, é justificável em Portugal, não porque não estejamos perante um poder político completamente fanático e opressor do seu povo (pelo menos num sentido económico), que estamos, mas principalmente porque ainda existem formas pacíficas de se provocar uma mudança na nossa sociedade. A violência não deve ser a primeira arma de uma população ansiosa de mudança, ela deve ser o último recurso quando todas as outras vias estão esgotadas.

 

            Quanto ao caso concreto, como já devem ter percebido, entendo obviamente que estas agressões gratuitas aos polícias que estavam a assegurar a segurança da Assembleia da República são completamente erradas e inaceitáveis a vários níveis. Desde já porque não consigo sequer compreender como é que alguém com sanidade mental se dispõe a estar hora e meia a atirar pedras a pessoas que se limitam a ficar lá quietos a levar com elas. Depois pela razão óbvia de que estão a falhar completamente o alvo, os polícias não são o rosto do regime, o braço do regime ou parte alguma do corpo do regime, eles são trabalhadores como todos os outros que têm de cumprir a sua função, sob pena de serem despedidos, coisa que, convenhamos, é pouco conveniente para quem quer que seja nesta altura do campeonato.

Acresce a tudo isto que acho que a violência é, do ponto de vista estratégico, um absoluto erro para quem pretende o derrube deste governo e desta política, como é o meu caso, ela apenas serve para legitimar, quer um endurecer das medidas de segurança, quer eventuais limitações de direitos, o que é exactamente a pior coisa que nos pode acontecer neste momento. Ao mesmo tempo a violência serve de pretexto para o Governo eclipsar completamente do panorama mediático a legítima e pacífica contestação de que tem sido alvo.

 

            Agora, é igualmente inaceitável que se utilize a violência praticada por um grupo de manifestantes para justificar uma utilização claramente excessiva de força por parte do Estado. E sim, a actuação da PSP neste caso foi absolutamente excessiva e despropositada. Não é compreensível que os polícias tenham estado tanto tempo a assistir (e a sofrer na pele) a estes actos de violência, bem como a crimes contra o património, sem nada fazerem e que depois carreguem indiscriminadamente sobre uma massa de pessoas que, na sua maioria não tinham feito nada de errado. Não é aceitável que se use o argumento de que quem lá estava sabia que se arriscava a isto porque os Cidadãos da República ainda têm o direito de se deslocarem livremente pelo espaço público nacional e a função da PSP é assegurar a sua segurança em todas as circunstâncias e não só quando é conveniente, havia outras tácticas, essas sim efectivamente selectivas, que poderiam ter sido usadas e não foram.

            É também claro como a água que toda a responsabilidade pelas atitudes da PSP é da hierarquia da polícia e do poder político porque não são os agentes que decidem qual é a acção a desenvolver, eles cumprem as ordens que lhes são transmitidas. É condenável, ainda assim, que os agentes não tenham tido o discernimento de tentarem perceber quais eram as pessoas contra quem deviam agir em vez de fazerem um uso indiscriminado da força, e o argumento de que eles já não estariam num perfeito estado de espírito depois das agressões que sofreram é irrelevante, porque isso não é culpa dos manifestantes pacíficos mas sim da hierarquia da polícia que optou por essa estratégia.

            Toda a acção da PSP foi completamente desadequada pelo que já não causou grande espanto que depois do triste espectáculo em frente ao Parlamento se tenha decidido transformar uma zona considerável da cidade de Lisboa num palco de perseguições por parte da polícia e vandalismo por parte dos elementos violentos presentes na manifestação, culminando na detenção de pessoas a mais de 1 km de distância da Assembleia da República, sem a certeza de os detidos terem estado sequer na manifestação em causa. Tudo isto é absolutamente lamentável e devia ter sido evitado por todos os meios.

 

            É nesta fase que surgem os factos que mais preocupação nos devem suscitar, factos esses que não podem ser imputados aos agentes, independentemente da culpa que possam ter, porque foram legitimados (e eventualmente até ordenados) pela hierarquia da PSP. É absolutamente inaceitável num Estado de Direito que as liberdades fundamentais, e constitucionais, sejam ignoradas pelas forças de segurança. Não podemos de forma alguma aceitar que haja detidos a quem seja negado o acesso a um advogado, para já não falar das suposições sobre agressões que possam ter ocorrido nas esquadras.

            Os factos que nos chegam sobre estas ‘detenções’ chegam para fazer qualquer pessoa consciente temer, quanto mais não seja, pela sua própria segurança. A função principal do Estado, a primeira de todas, é assegurar a segurança dos Cidadãos contra as arbitrariedades de um ‘estado natural’ em que todos temem pela sua segurança, esse é o fundamento primeiro da existência de estados e é isso que justifica o monopólio público do uso da força, sendo isso também que torna toda a violência exercida pelo estado mais odiosa, por natureza, do que aquela que for exercida à margem da lei. No dia em que o Estado impunemente viola esse papel não só todos temos a temer como, filosoficamente, passamos a ter o direito de nos defendermos, violentamente se for caso disso, contra tudo e todos, incluindo os agentes da autoridade.

            A coisa mais assustadora de todos estes acontecimentos é que o Governo da República hoje sabe que pode impunemente suspender as liberdades constitucionais a uma parte dos Cidadãos da República sem que haja críticas de monta a esse facto. Isto acontece, lembremo-nos, com um Governo que já deliberadamente ignorou a Constituição, ou tentou contorná-la, outras vezes.

Ao fim de 48 anos de Democracia já é altura de nos consciencializarmos que isto não pode acontecer, nas palavras sempre sábias de Benjamin Franklin: "Aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança".

 

            E é exactamente no que toca às reacções a estes acontecimentos que nós atingimos o ponto mais surreal de toda a telenovela. Por um lado o Ministro da Administração Interna aparece a dar cobertura a tudo o que se passou como se de uma comum actuação da PSP se tratasse, mas ao menos ele deu-se ao trabalho de tentar esconder a situação, ao contrário de um senhor (que imagino seja do Comando Metropolitano de Lisboa) que apareceu na televisão a gozar descaradamente com a cara dos Portugueses, já com a certeza que ninguém se importaria com o sucedido, e a falar de uma actuação proporcional e selectiva, como se não estivesse a falar de uma carga indiscriminada sobre cinco ou dez vezes mais pessoas do que as que causaram desacatos. O dia seguinte traz-nos declarações de todos os líderes políticos do arco do poder a achar tudo isto naturalíssimo, que culminam em declarações do Presidente da República Portuguesa que parece ter confundido o seu título com o de Presidente do Conselho ao dizer "Não se tente inventar argumentos. São pessoas apostadas na destruição, apostadas na violência, que querem destruir a sociedade e por isso a polícia não pode deixar de ter todo o apoio dos portugueses para enfrentar atitudes como esta que visam destruir a riqueza do nosso país e em particular visam destruir a força humana que existe no nosso país". Este discurso do inimigo interno nunca foi propriamente prenúncio de nada de positivo.

            Não fossem as declarações dos advogados dos acusados e de responsáveis da Ordem dos Advogados, com o seu Bastonário Marinho Pinto a ser, mais uma vez, a única pessoa com responsabilidades preocupada com o Estado de Direito em Portugal, e não teria havido ninguém com relevo a afirmar-se contra todos estes atropelos.

 

            Entretanto o texto já vai longo e o mais importante já está escrito, por isso, apenas me resta repetir o que já disse noutro sítio:

Quem acha que aquilo que está a acontecer nas manifestações são apenas 'comportamentos inaceitáveis de um bando de rufias' e não consequências óbvias da situação do país é tonto…

Quem acha que a polícia é mais culpada do que aconteceu do que um rottweiler que, sendo treinado para atacar, é atiçado contra alguém é idiota…

No fundo, quem não perceber que polícias e manifestantes são ambos peões instrumentalizados no meio disto tudo não está bem a ver o filme...



publicado por Gonçalo Clemente Silva às 15:05 | link do post | comentar

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