Regresso sempre a Sophia de Mello Breyner, não sei porquê. Aliás, sei bem porquê. É que, além das palavras eleitas, as mais bem escolhidas, a sua voz de poeta concede a essas mesmas palavras o significado e a nobreza da sua alma profunda, sua e das palavras. É a voz digna do observador, que lê nos olhos do semelhante a condição e os acontecimentos, e a leva à acção, e que tantas vezes agiu lendo as palavras e a expressão dos olhos do seu povo.
Não conheço as leituras do Primeiro-Ministro Pedro Passos Coelho. Provavelmente serão leituras económicas economizadas, dos mestres dessas ciências maiores. Não terá tempo para mais, absorvido que está no seu ofício. Ou poderá dizer-se que outras leituras mais prosaicas enfraquecerão o espírito, tão determinado em obedecer às vontades.
Se me fosse permitido, sugeria ao Senhor Primeiro-Ministro, a leitura de um poema relativamente curto, a ser lido pesando com gravidade e se possível sentindo o significado de cada palavra, e sentindo sinta a dor de uma pedra arremessada ou de um grito - expressões de inaceitável violência -, para que de imediato ou com tempo, compreenda melhor a realidade, e viva um pouco acima das suas possibilidades:
Esta gente cujo rosto
ás vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis
Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre
Pois gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome
E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada
Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
De um tempo justo
Sophia de Mello Breyner Andresen, in Geografia (1967).