A novilíngua que sub-repticiamente se tem apoderado do discurso vigente alicerça-se, tantas e tantas vezes, em mitos e conceitos pouco credíveis. As crenças de poucos tornam-se os dogmas de muitos. Questioná-los, nem sempre é fácil e pode até tornar-se uma experiência perigosa. E assim, qual vórtice, é a lógica dominante que tudo suga, criando a espuma dos nossos dias.
Distante dos uivos há já algum tempo, decidi regressar à alcateia vociferando o que não me pertence. Através de vozes sapientes, trago uivos que se assumem como abordagens alternativas à realidade imediata. Surge, então, este ciclo curto de ideias de certa forma subversivas, o qual se inicia com uma das visões que mais tem inquietado o campo da economia, a de Thomas Piketty.
“To put it bluntly, the discipline of economics has yet to get over its childish passion for mathematics and for purely theoretical and often highly ideological speculation, at the expense of historical research and collaboration with the other social sciences. Economists are all too often preoccupied with petty mathematical problems of interest only to themselves. This obsession with mathematics is an easy way of acquiring the appearance of scientificity without having to answer the far more complex questions posed by the world we live in.” (Thomas Piketty, O Capital no Século XXI, 2014:32)
Neste caso, Thomas Piketty reflecte sobre o apego excessivo dos economistas a modelos matemático-dedutivos, assim como realça a escassez de abordagens interdisciplinares que conjuguem a economia e outras ciências sociais. Por conseguinte, a capacidade que as ciências económicas têm para responder a questões complexas é limitada. Este uivo remete-nos, de certa forma, para a ideia tão actual da economia como entidade sacrossanta. A economia acima de tudo, com capacidade para explicar qualquer dimensão da realidade. Realidade em que tudo possui um valor exacto, em que tudo é mensurável. Até a vida.
O caso tecnoforma já nos tinha deixado, por nada ter ficado claro, algumas dúvidas em relação à forma como o actual Primeiro-Ministro conduziu a sua vida profissional e contributiva, mas agora, com a história da falta de pagamentos à Segurança Social, saímos do campo das dúvidas para o campo das certezas.
É inadmissível que um Primeiro-Ministro tente justificar a sua evasão contributiva, porque é disso que se trata, com o desconhecimento da lei. Primeiro é inadmissível porque nenhum cidadão o pode fazer, depois é ainda mais inadmissível porque a falha por desconhecimento aconteceu depois dele ter sido Deputado, ou seja, depois de ele ter feito parte do selecto grupo de pessoas que escrevem e aprovam as leis que ele alega desconhecer. É inaceitável que um ex-Deputado se defenda alegando não saber aquilo que qualquer trabalhador normal sabe e tem obrigação de saber. Ainda assim, porque não podemos provar que está a mentir, não sendo aceitável como justificação, é uma razão que temos de tomar por boa. O grande e indesculpável problema é exactamente a forma como ele lidou com toda esta asneirada.
Como muitas vezes acontece em política, o problema não foi o fuck up, a asneira, porque os políticos, como todas as pessoas, também erram e isso é admissível, o problema foi o cover up, a forma como, em vez de se assumir e corrigir o erro, se tentou encobri-lo.
Sabemos agora que Passos Coelho sabia desde 2012 da existência desta dívida sem que nada tivesse feito até estarmos nas vésperas do escândalo rebentar. Ou seja, o Primeiro-Ministro não demonstrou qualquer vontade de corrigir o erro até ele ser um problema de imagem. Para ser mais claro, o facto de ele não ter pago as contribuições para a Segurança Social em nada o incomodou, não fosse essa coisa chata de se ter descoberto.
Mas pior, isto significa que enquanto passos coelho fazia discursos moralistas, no fim de 2012, dizendo que os pensionistas "estão a receber mais do que descontaram", ele provavelmente já sabia que ele não tinha descontado tudo o que estava obrigado a fazer e nada fez quanto a isso. Também quando afirmava, em 2012, pertencer a uma ‘raça’ de homens que paga o que deve, já saberia, ou estaria quase a saber, que não tinha, nem pouco mais ou menos, pago tudo o que devia ao próprio estado que tem a incumbência de gerir. Os exemplos de hipocrisia e falta de carácter demonstrado por nada ter feito para honrar as suas obrigações depois de saber do sucedido seriam infindáveis. Enquanto o seu governo penhorava os bens de milhares de pessoas com dívidas menores à Segurança Social, Pedro Passos Coelho sabia não ter cumprido com as suas obrigações e nem por um momento sequer teve intenção de regularizar as dívidas que tinha deixado por pagar até ser avisado que isso se saberia. Pior ainda, mesmo agora que quis evitar um problema de imagem pagando a dívida antes de a notícia sair a público, Passos apenas quis parecer que cumpria as suas obrigações, porque nem sequer se certificou de que deixaria toda a sua situação regularizada, apressando-se a pagar o mínimo que podia só para nos tentar atirar areia para os olhos. Isto, talvez mais que tudo o resto, demonstra bem a real falta de preocupação de Passos em cumprir com as suas obrigações, querendo apenas fazer os mínimos para ter uma desculpa.
Para Passos Coelho, uns milhares de euros (que para mim, como para tantos outros, seriam impossíveis de pagar, mas para ele provavelmente não) são mais valiosos do que a imagem, a credibilidade e a honra do Primeiro-Ministro da República, e isso é gravíssimo. Se a isto juntarmos a enorme falta de carácter que todo este episódio demonstra, é inevitável a conclusão que qualquer homem com um mínimo de honra ou vergonha na cara se demitiria na hora e, na falta desses mínimos de moralidade no Primeiro-Ministro, qualquer Presidente da República decente o demitiria imediatamente.
Infelizmente, nem o Primeiro-Ministro nem o Presidente da República possuem os mínimos de decência exigíveis a qualquer detentor de cargo público.
A interpelação é ao governo, nos partidos que o compõem, mais um ou outro ente que o suporte, e tal interpelação é feita não por compaixão pela personagem, mas antes pela função e cargo que ocupa. Está no limite do admissível a um Presidente da República desde o início do mandato, melhor, desde o discurso profundamente vingativo que realizou em reação à sua vitória nas últimas eleições presidenciais. Tanto no respeito às suas obrigações constitucionais da arquitetura institucional do Estado Português; quanto à transparência na relação institucional entre o Presidente da República com o Governo, em diplomas de promulgação rápida, quando o que se exige é ponderação e transparência; quanto ao distanciamento necessário no relacionamento político entre governo e oposição; quanto à forma como se envolve em casos como o BES, tentando mais tarde desresponsabilizar-se; quanto à proteção dos seus aliados políticos, em relações de estranha cumplicidade, em todos estes aspetos e no exercício do cargo, Cavaco Silva, desmereceu o respeito e diminuiu a instituição Presidência da República.
Hoje, tratou de dar mais um exemplo da sua proverbial insensatez, da sua ignorância que desconhece o sentido de solidariedade, referiu-se a um outro Estado aliado, a Grécia, parceiro na União Europeia, como se referisse a algum inimigo pessoal. Referiu-se à figura da renegociação da dívida como "a coisa", fazendo lembrar o diácono Remédios na sua dificuldade em pronunciar os comunistas. No fundo, na sua introspeção individual debate-se certamente com todos os dilemas que a função de Presidente da República colocaria, não conseguindo no fim de contas, sair de si, tal como o "Pobre Tolo", personagem de Teixeira de Pascoaes.
Hoje, nas declarações de Cavaco Silva, hoje quando muito se joga sobre o futuro da Europa, da sua prosperidade e do seu progresso, bem como da sua paz, este personagem durável, mas menor na história de Portugal, incapaz sequer de representar a sua geração ou o seu tempo, demonstrou uma vez mais o papel em que está confiado: o de oficial do Governo. Mais, o paralelo que representa encontra apenas semelhança com a organização do Estado na ditadura de Salazar e Caetano, quando o Presidente estava dependente do Conselho de Ministros. Ajudem-no a terminar as suas funções com dignidade.
Por fim, resta-me uma última preocupação: a escolha do próximo Presidente da República. Escolha no duplo sentido da escolha pelos portugueses, e antes dessa, da escolha individual ou partidária de quem pretender propor-se a eleições. Preocupam-me alguns dos nomes que vão surgindo, o seu hipotético apoio partidário, pela necessidade imperiosa de recolocar a instituição Presidência da República no importante lugar que deveria ocupar.
O actual confronto na Europa era inevitável. Um projecto económico que falhou e perde todos os dias a sua credibilidade intelectual (até o Vítor Bento já percebeu que estava errado), o da austeridade, teria, mais cedo ou mais tarde, de ser confrontado com uma alternativa. É nesse contexto que surge o desafio do SYRIZA ao establishment político e institucional Europeu liderado pela Alemanha.
KAL's cartoon - Jan 31st 2015 | The Economist
A alternativa económica do SYRIZA não é, por muito que a comunicação social o tente impingir (e a Portuguesa tem sido especialmente insistente nessa matéria), de extrema-esquerda nem particularmente radical.
Não se vislumbra nas propostas do SYRIZA uma reconfiguração da propriedade dos meios de produção, uma alteração significativa da distribuição da riqueza ou uma profunda alteração do papel do Estado; não são sequer conhecidas propostas de nacionalização de importantes sectores da economia. Assim, escapa-me por completo como pode o projecto político que preconiza ser apresentado como de extrema-o-que-quer-que-seja ou radical. Longe de promover uma transformação socialista da sociedade, o SYRIZA apresenta-se com um projecto social-democrata, e até nem muito, para resolver a situação calamitosa a que a austeridade conduziu a Grécia, ao bom velho estilo da esquerda Europeia antes de ser tomada de assalto pela terceira via. Tão evidente é este facto que o próprio Partido Comunista Grego apelida, provavelmente com razão, o SYRIZA de social-democrata, esperemos que na versão séria.
A vontade transformadora que a direita neoliberal imprimiu às sociedades europeias com os programas de austeridade é muito mais radical na transformação que opera na matriz do estado Social Europeu tradicional do que as propostas do SYRIZA, que se limitam a querer mantê-lo.
O Radicalismo está, portanto, do lado dos ortodoxos da austeridade, com a Alemanha à cabeça e fortes apoios nos governos que abraçaram a austeridade como programa político em Espanha e Portugal. São radicais nos objectivos e nos métodos, pois entendem que as escolhas democráticas dos eleitores só devem ser mantidas se se conformarem com as premissas da doutrina que pretendem impor à Europa, se assim não for devem ser sacrificados todos os compromissos eleitorais no altar da austeridade. Os radicais não aceitam negociar, insistem na via única da austeridade mesmo quando ela claramente falhou, e em nenhum lado isso é mais claro que na Grécia, insistem até quando os seus próprios argumentos são expostos como falsos (sim, parece que não é verdade que um incumprimento da dívida dificulte o acesso aos mercados). O extremismo da posição dos defensores da austeridade a todo o custo é tão evidente que a própria Comissão Europeia, o BCE e diversos governos, incluindo os EUA, advertem repetidamente para a necessidade de entendimento, mostrando-se muito mais moderados que Merkel e Schauble.
Em Portugal o radicalismo perante as propostas Gregas não é menor. Durante os últimos quatro anos, em Portugal e na Europa, têm-nos dito vezes sem conta que não há alternativa, mas também que um país pequeno como Portugal não poderia nunca fazer valer uma posição alternativa na Europa. O que é que acontecerá à retórica da direita, e ao seu programa político, se for demonstrado que afinal há alternativa e que afinal um país pequeno pode fazer valer a sua voz na Europa? O que será do discurso de Passos Coelho e Paulo Portas sobre o irrealismo de uma negociação há muito necessária? O medo deste cenário é seguramente uma explicação para o radicalismo da Alemanha, expectavelmente acompanhada na sua intransigência pelo Governo Português.
O assustador é que estes radicais, disponíveis a tudo para salvar a sua doutrina, preparam-se agora para, perante a recusa do Governo Grego em renegar as suas promessas eleitorais (supremo desplante!), se disponibilizarem a sacrificar a estabilidade, talvez até a continuidade, da Zona Euro e do próprio projecto Europeu. Tudo para garantir que ninguém nunca mais se desvia do caminho único que defendem. Mas alguém acha mesmo que os povos da Europa se resignarão a empobrecer ainda mais durante anos sem, falhando tudo o resto, acabarem por saltar para os braços da extrema-direita (essa sim extremista)?
Não deixa de ser irónico que sejam os herdeiros políticos dos Marxistas a tentar aplicar hoje o programa económico que já no século passado salvou o Capitalismo e sejam hoje os herdeiros dos que criaram o Estado Social Europeu, ou parte deles, os radicais que empurram a Europa para os braços dos extremismos. Talvez não seja assim tão irónico, Marx também defendia que a história se repete, “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.
Nós somos Charlie, contra a tirania de qualquer rosto, contra o autoritarismo, contra o totalitarismo; contra o fundamentalismo, venha de onde e de quem vier; somos pela liberdade de expressão; somos pela liberdade; estamos contra o medo e o terror; lutamos por uma sociedade coesa e justa, da igualdade e da fraternidade. Lutamos em conjunto. Vemos que existem causas, lutemos por elas. Je suis Charlie. Nous sommes Charlie!
No século XX, o Capitalismo não venceu a disputa com o ‘socialismo realmente existente’ pela sua maior capacidade de gerar riqueza, mas sim por se ter imposto como o modelo económico que promovia a democracia, os direitos humanos e as liberdades cívicas e políticas dos cidadãos (o facto de o capitalismo que venceu essa batalha ser o do Estado Social e não o da desregulação que hoje domina merece ser referido).
Depois dessa vitória, já no final do século, a globalização desreguladora do comércio internacional (e liberalizadora dos movimentos de capitais) foi defendida como a melhor forma de trazer a democracia e os direitos humanos aos regimes autoritários dos países menos desenvolvidos, de que o melhor exemplo foi o caso da China.
Mais genericamente, desde a década de 70 até hoje, o Capitalismo, o mais desregulado possível, é defendido como o sistema económico desejável por promover as maiores liberdades dos indivíduos. É esse o argumento moral invocado do Capitalismo, principalmente agora que os supostos benefícios económicos do Capitalismo, depois da brutal crise económica que criou, foram trocados, enquanto argumento, pela simples chantagem dos mercados, que, convenhamos, é um argumento substancialmente menos motivador.
Acontece que, apesar de os neoliberais nunca deixarem os factos estragarem os mitos da sua argumentação, nenhuma destas teses tem sobrevivido ao teste da realidade.
Ainda estamos todos à espera (e, temo bem, assim continuaremos) que a globalização que os neoliberais construíram traga a prometida democratização do mundo não democrático e, no que toca ao mundo democrático, os resultados prometidos também continuam ilusórios, parecendo mesmo que o ‘efeito de contágio’ é o inverso do prometido, piorando, isso sim, a qualidade das democracias existentes.
O Capitalismo Neoliberal, quando confrontado com os problemas que ele próprio criou, como a presente crise, prefere sempre sacrificar a qualidade da Democracia e das liberdades individuais a pôr em causa o dogma económico vigente.
São vários os casos que o confirmam. A Espanha, ainda no passado dia 11, nos deu mais um exemplo. Confrontados com uma feroz insatisfação social contra o estado a que o neoliberalismo votou a sociedade espanhola, os neoliberais respondem limitando as mesmas liberdades individuais que usam para promover as suas ideias. Não é caso único, tem-se verificado por todo o mundo ocidental. Na Hungria, as instituições internacionais, incluindo as europeias que tão rápidas são a ameaçar com consequências os países economicamente indisciplinados, como se se tem verificado em relação à Grécia, pouco mais fazem do que emitir umas palavras de circunstância sobre os inúmeros ataques da direita Húngara, no governo, ao Estado de Direito e à separação de poderes.
Durante quanto mais tempo aceitaremos as falácias sobre o capitalismo neoliberal servir para promover as liberdades dos Cidadãos? Quanto mais tempo ignoraremos as evidências de o Capitalismo desregulado, ao invés de promover as Democracias Liberais, ser, a prazo, incompatível com elas?
A desculpa é sempre a mesma, por estes dias aplicada à TAP. As regras comunitárias (quando não são outras quaisquer) impedem o estado de injectar o muito necessário capital nesta, como noutras, empresa pública, o que é verdade. Assim sendo, o estado justifica a alienação da TAP como uma inevitabilidade das regras europeias.
O problema é mesmo que tudo isto nos é apresentado como facto consumado. As regras europeias não surgem do ar, foram discutidas, negociadas e aprovadas, também com intervenção portuguesa, ou de portugueses, nesse processo. Mas, ignorando tudo isto, ignorando que as regras têm uma origem, objectivos e, acima de tudo, uma base ideológica quando são criadas, são-nos apresentadas como inevitabilidades imanentes que decorrem, tal como o poder régio absoluto do antigo regime, de uma espécie de emanação divida.
A propósito disso, e da importância da intervenção portuguesa, alguns de nós (poucos, infelizmente) assistem hoje a mais um desses processos negociais. Agora é a vez do TTIP, o tratado de comércio euro-americano que promete mais desregulação e liberalização externa e, seguramente, interna. Este é um excelente exemplo, porque nelee se vê que Portugal nunca deixou de influenciar estas decisões, só afirma que lhe falta esse poder quando quer justificar falta de vontade. Aliás, neste processo, até temos o exemplo de um valente bater de pé do governo (verbalizado pelo seu mais radical ideólogo) à Comissão Europeia e até à própria Alemanha, que está, neste caso, como resultado não intencional de defender o seu próprio interesse, a defender mais o interesse de Portugal que o nosso próprio governo.
Assim, perante a passividade geral, o governo continua a fazer de conta que é obrigado pelas regras actuais a avançar com aquilo que de facto quer fazer, ao mesmo tempo que negoceia as novas regras que no futuro usará para justificar novas vagas de políticas neoliberais, apresentando-as então como imposições externas que nada têm que ver com eles.
Foi assim com as regras do euro, com as regras do mercado único, com as regras que impedem o estado de capitalizar a TAP e com muitas outras. Enquanto assim for, e nisso acreditarem as pessoas, haverá poucas possibilidades de alterar o que quer que seja. Mas aparentemente ninguém liga: ‘no pasa nada’…
Não acredito em deuses, acho que nunca vou acreditar, e, sobretudo, não acredito num deus pessoal, antropomórfico, como o que nos é o proposto pelos católicos. Além disto, a história da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) de conservadorismo social, intolerância e aversão à ciência, tendo estado quase sempre política, filosófica e cientificamente do lado errado de todas as batalhas pelo progresso (e pela defesa dos mais fracos, que deveria proteger), fazem com que tenha sido sempre muito céptico em relação a toda a aparente abertura do novo Papa.
Hoje, acho que fui finalmente convencido. Não, não tive uma revelação, nem passei a acreditar num deus, mas acho efectivamente que este Papa é capaz de estar do lado certo da história. Hoje, o Papa retirou a Igreja de onde nunca devia ter entrado, recusou o literalismo bíblico, rejeitando que um livro com quatro mil anos deva servir como interpretação literal do mundo natural, afirmando que Deus não é “um mágico com uma varinha de condão” e que a Igreja não deve rejeitar a Teoria da Evolução ou a do Big Bang. Acabou com a margem para a tolerância das “pseudo-teorias” do criacionismo ou do ‘design inteligente’.
Depois da abertura em relação aos homossexuais e aos tipos não tradicionais de família, bem como de um retomar efectivo das preocupações sociais – verdadeiramente sociais, que passam pelos direitos das pessoas e não pelo assistencialismo controlador (que tanto tem sido a tradição) – pela ICAR no consulado de Francisco, a aceitação da supremacia da ciência, no que ao mundo natural diz respeito, retira a Igreja, pela primeira vez, do pensamento medieval que a tem caracterizado.
A escolha de uma interpretação simbólica, talvez mais profunda, para a Bíblia centra a Igreja na sua função de instituição que visa a consumação dos fiéis com a sua fé, e a essa, por não ter que ver comigo, eu não tenho nada a objectar.
Francisco, enquanto Bispo de Roma, sucessor de Pedro, talvez seja um herdeiro (pela primeira vez?) à altura do antecessor de Pedro, seguindo o seu exemplo e, se o conseguir, fazendo uma verdadeira revolução dentro da Igreja. Tal como o antecessor de Pedro, pretende renovar uma religião com mais de dois mil anos de tradições arcaicas, humanizando-a e centrando-a na defesa dos mais frágeis e na sua relação com o seu deus, não pela exclusão, mas pela inclusão.
Se será bem-sucedido, não sei. Não será tarefa fácil e aquele a quem me referia atrás consta que era perfeito e nem assim conseguiu ter grande sucesso na sua época. Mas que promete também ficar para a história, não tenho grandes dúvidas.
Confesso que gostava que os apoiantes de Seguro defrontassem os apoiantes de Costa em Congresso, devia ser essa a função do Congresso, principalmente tendo em conta que já nem o Secretário-Geral é nele eleito. Não acho desejável que tantos apoiantes de um e outro lado, que durante 4 meses divergiram de forma tão radical e em questões tão fundamentais, não confrontem as suas divergências em Congresso, frente a frente, de forma clara. Não acho desejável, mas acho compreensível.
Não culpo pela ausência desta clarificação os partidários de um ou outro lado, “O homem é ele e a sua circunstância” e, neste caso, parece-me que é sobretudo a circunstância que assim o determina. Essa circunstância foram as eleições Primárias.
As primárias foram, todos o afirmam, um enorme sucesso. Correram muito bem, demasiado bem, na minha (possivelmente parcial, uma vez que não sou, nem nunca fui, adepto do modelo) opinião.
Correram demasiado bem porque, mesmo que eu tenha querido muito ter Costa na liderança do PS, nunca quis ter Costa, nem ninguém, a liderar o partido com uma legitimidade e, portanto, um poder absoluto, é isso que hoje acontece.
O Partido Socialista terá cerca de 100 mil militantes, a avaliar pela história recente do partido, num cenário de disputa eleitoral (o que não será o caso do próximo Congresso), votariam para eleger os delegados ao Congresso Nacional no máximo 40 mil militantes. António Costa foi escolhido numas eleições primárias em que participaram quase 180 mil pessoas, das quais 120 mil deram-lhe a sua confiança. Neste momento e, presume-se, a partir de agora, qualquer líder escolhido em primárias contará sempre com uma muito maior legitimidade política, decorrente de uma maior legitimidade eleitoral, do que o órgão máximo do PS.
Agora sim os líderes serão inamovíveis. Qual poderia ser o Congresso, eleito por 30 mil pessoas, que poderia ter força política para eventualmente pôr em causa uma liderança legitimada pela confiança de 120 mil cidadãos?
Com a introdução das eleições directas, os Congressos já viram o seu peso e a sua utilidade substancialmente reduzidos (o que é, na minha opinião, muito negativo, como já expliquei noutro texto). Com a introdução do modelo de primárias, quando ligado umbilicalmente à liderança do partido, que é o caso, os Congressos ficarão definitivamente reduzidos a, utilizando a expressão que uma vez o Pedro Delgado Alves usou para escrever alguns congressos, uma espécie de ‘congrício’: formalmente um congresso, na prática um comício.
Assim sendo, os Congressos mais não serão do que um arcaísmo formal, herdado de tempos anteriores, mas já sem grande utilidade. Isto não seria muito mau, mas há outras consequências funestas desta alteração.
Desde logo, a questão que eu comecei por colocar sobre a possibilidade de se porem em causa as lideranças, o que já é suficientemente mau, mas não só. Sem disputas em Congresso (e este era um problema que já existia desde a introdução das directas, sendo agora ‘apenas’ agravado), as eleições têm a tendência para se tornarem crescentemente pessoalizadas, desligando-se de uma verdadeira discussão de projectos que, sendo também constituídos por pessoas, não podem nunca ser reduzidos apenas à sua liderança. Não podemos queixar-nos (incluindo aqui toda a comunicação social e os comentadores que tanto o fizeram na campanha para as eleições primárias) da ausência de diferenças programáticas se, pelas próprias regras instituídas, fomentamos um modelo em que se foca a escolha apenas na diferença de personalidades, porque são apenas essas que vão a votos no momento mais importante.
Por último há uma outra desvantagem, que tem também que ver com o universo eleitoral das primárias: o esvaziamento da participação partidária. Se o sistema de eleição se torna mais pessoalizado e nacional, contrariando as dinâmicas de grupo e negociação anteriormente dominantes, ao mesmo tempo que se retira o direito exclusivo de voto aos militantes na escolha da liderança, então, além de se esvaziar o Congresso, esvazia-se por completo, em termos de influência, a militância partidária. Qual será a função real de ser militante partidário no cenário que se desenha é para mim uma completa incógnita, mas, tendo em conta que não há nenhuma Democracia funcional sem partidos e não há partidos sem militantes, é uma incógnita preocupante.
Temo bem que as primárias façam escola no nosso sistema político e que isso possa não ter bons resultados, espero estar enganado.
Rui Ramos conseguiu, na sua última crónica no jornal oficial do neoliberalismo, superar-se a si próprio, atingindo um nível de desonestidade intelectual que nem dele eu esperaria.
Nela, critica as declarações, conhecidas esta semana, em que Ferro Rodrigues afirma que “Não se pode, evidentemente, ao mesmo tempo, defender o progresso do Serviço Nacional de Saúde, defender o progresso da escola pública, defender o progresso na capacidade da proteção social e depois ter promessas desbragadas em matéria de diminuição dos impostos”.
Para mim, Socialista que sou, estas afirmações fazem imenso sentido e são uma clarificação importante sobre o caminho que a Esquerda democrática tem de percorrer se quiser verdadeiramente inverter o domínio do neoliberalismo na nossa sociedade. Compreendo que o Rui Ramos, defendendo o que defende, não concorde com isso e acredito que existam argumentos válidos em sua defesa, mas não os que utilizou. Nesses, nem ele acredita.
Rui Ramos estabelece uma identidade entre austeridade e a carga fiscal, dizendo depois que “o que Ferro Rodrigues nos quis dizer é isto: ou mantemos a austeridade (o “assalto fiscal ao trabalho”), ou não há Estado social”, ou seja que, para o PS, “o Estado social é a austeridade” (Rui Ramos depois afirma que não tem de ser assim, dando o exemplo do estado social existente durante o tempo de Marcello Caetano, mas deixemos as simpatias dele pelo anterior regime de parte). Numa conversa de café seria admissível ouvir este argumento de um qualquer chico-esperto, mas não de alguém que é historiador e doutorado em Ciência Política, nesse caso é só desonesto.
A austeridade não é só aumentos de impostos. A austeridade é a consolidação orçamental que se faz através do aumento da carga fiscal (e há muitas formas de fazer esse aumento, diferentes da que foi seguida) associado a um corte nas funções e na despesa do estado, não esquecendo a componente de compressão salarial (pela via do aumento do desemprego ou das chamadas ‘reformas estruturais’, como são da diminuição dos direitos laborais), indispensável à melhoria da competitividade externa.
Se desconsiderássemos, como faz Rui Ramos, todos os outros factores que referi e entendêssemos que a austeridade significa só aumento de impostos (ou manutenção de impostos altos, que é isso que Rui Ramos lê nas afirmações de Ferro Rodrigues) então a Dinamarca, a Finlândia e a Suécia estariam entre os campeões da austeridade na Europa, com cargas fiscais de 56.3% (do PIB), 56.0% e 51.6%, respectivamente, quando em Portugal ela é de 43.7%.
Eventualmente, Rui Ramos, no seu fervor neoliberal, poderia, não sendo economista, esquecer tais factos. O que é particularmente ridículo é que, sendo historiador, ignore o período que se seguiu à grande depressão nos EUA e à Segunda Guerra Mundial na Europa, em que os governos de esquerda promoveram significativos aumentos de impostos e de despesa pública, não como política de austeridade, o que é evidente para qualquer pessoa séria, mas exactamente para combater os efeitos das crises económicas e das políticas de austeridade que lhes antecederam.
Não vou sequer, porque não vale a pena, alongar-me sobre o facto de a mesma pessoa que acha que “Quando comparamos a ditadura salazarista com as suas contemporâneas, a contabilidade repressiva é modesta” poder afirmar que para os outros, supõe-se pelo contexto que seja Ferro Rodrigues e o PS, “o Estado social vale sobretudo como um instrumento do domínio da sociedade pela oligarquia política”; já estamos habituados a estes devaneios do historiador oficial da direita liberal na economia e conservadora na democracia. O que tem de se referir é que, vindo de alguém com o currículo e o percurso de Rui Ramos, nada disto é inocente, é uma tentativa consciente de enganar as pessoas com recurso retórica elaborada e a uma suposta reputação ‘académica’.
O que é efectivamente grave é que continue a ser dada credibilidade a gente que demonstra tamanha falta de honestidade intelectual, estando disposta a tudo, mesmo a enganar deliberadamente os outros, para fazer avançar as suas opiniões políticas.