Sexta-feira, 17 de Outubro de 2014

 

 

Rui Ramos conseguiu, na sua última crónica no jornal oficial do neoliberalismo, superar-se a si próprio, atingindo um nível de desonestidade intelectual que nem dele eu esperaria.

Nela, critica as declarações, conhecidas esta semana, em que Ferro Rodrigues afirma que “Não se pode, evidentemente, ao mesmo tempo, defender o progresso do Serviço Nacional de Saúde, defender o progresso da escola pública, defender o progresso na capacidade da proteção social e depois ter promessas desbragadas em matéria de diminuição dos impostos”.

Para mim, Socialista que sou, estas afirmações fazem imenso sentido e são uma clarificação importante sobre o caminho que a Esquerda democrática tem de percorrer se quiser verdadeiramente inverter o domínio do neoliberalismo na nossa sociedade. Compreendo que o Rui Ramos, defendendo o que defende, não concorde com isso e acredito que existam argumentos válidos em sua defesa, mas não os que utilizou. Nesses, nem ele acredita.

 

Rui Ramos estabelece uma identidade entre austeridade e a carga fiscal, dizendo depois que “o que Ferro Rodrigues nos quis dizer é isto: ou mantemos a austeridade (o “assalto fiscal ao trabalho”), ou não há Estado social”, ou seja que, para o PS, “o Estado social é a austeridade” (Rui Ramos depois afirma que não tem de ser assim, dando o exemplo do estado social existente durante o tempo de Marcello Caetano, mas deixemos as simpatias dele pelo anterior regime de parte). Numa conversa de café seria admissível ouvir este argumento de um qualquer chico-esperto, mas não de alguém que é historiador e doutorado em Ciência Política, nesse caso é só desonesto.

 

A austeridade não é só aumentos de impostos. A austeridade é a consolidação orçamental que se faz através do aumento da carga fiscal (e há muitas formas de fazer esse aumento, diferentes da que foi seguida) associado a um corte nas funções e na despesa do estado, não esquecendo a componente de compressão salarial (pela via do aumento do desemprego ou das chamadas ‘reformas estruturais’, como são da diminuição dos direitos laborais), indispensável à melhoria da competitividade externa.

Se desconsiderássemos, como faz Rui Ramos, todos os outros factores que referi e entendêssemos que a austeridade significa só aumento de impostos (ou manutenção de impostos altos, que é isso que Rui Ramos lê nas afirmações de Ferro Rodrigues) então a Dinamarca, a Finlândia e a Suécia estariam entre os campeões da austeridade na Europa, com cargas fiscais de 56.3% (do PIB), 56.0% e 51.6%, respectivamente, quando em Portugal ela é de 43.7%.

Eventualmente, Rui Ramos, no seu fervor neoliberal, poderia, não sendo economista, esquecer tais factos. O que é particularmente ridículo é que, sendo historiador, ignore o período que se seguiu à grande depressão nos EUA e à Segunda Guerra Mundial na Europa, em que os governos de esquerda promoveram significativos aumentos de impostos e de despesa pública, não como política de austeridade, o que é evidente para qualquer pessoa séria, mas exactamente para combater os efeitos das crises económicas e das políticas de austeridade que lhes antecederam.

 

Não vou sequer, porque não vale a pena, alongar-me sobre o facto de a mesma pessoa que acha que “Quando comparamos a ditadura salazarista com as suas contemporâneas, a contabilidade repressiva é modesta” poder afirmar que para os outros, supõe-se pelo contexto que seja Ferro Rodrigues e o PS, “o Estado social vale sobretudo como um instrumento do domínio da sociedade pela oligarquia política”; já estamos habituados a estes devaneios do historiador oficial da direita liberal na economia e conservadora na democracia. O que tem de se referir é que, vindo de alguém com o currículo e o percurso de Rui Ramos, nada disto é inocente, é uma tentativa consciente de enganar as pessoas com recurso retórica elaborada e a uma suposta reputação ‘académica’.

O que é efectivamente grave é que continue a ser dada credibilidade a gente que demonstra tamanha falta de honestidade intelectual, estando disposta a tudo, mesmo a enganar deliberadamente os outros, para fazer avançar as suas opiniões políticas.



publicado por Gonçalo Clemente Silva às 01:47 | link do post | comentar

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