Não nos deixamos enganar pela realidade.
O espírito geral das classes urbanas portugueses mede-se, hoje em dia, com um barómetro. Literalmente, pela pressão. Pressão laboral, social, educacional, corporativa, económica, etc. E à medida que a pressão sobe nestes pontos, perdemos força anímica. Andamos a tentar coisas que se resumem a reabilitar a sociedade e, com ela, a nossa vida. Procuramos na acção política a medida do combate necessário. Das grandes manifestações de rua do início da crise à 'reforma' dos partidos políticos e ao surgimento de novos modelos de participação, tentamos todos ser moderados porque nos ensinaram que é na moderação que reside a virtude e que a democracia é mais ou menos isso: a moderação virtuosa. Apontamos o dedo, ainda hoje, aos exaltados (de esquerda, de centro ou de direita) e exigimos-lhe a justa medida do protesto pela estabilidade das nossas vidas. Recusamos liminarmente os extremismos porque fomos ensinados assim e temos tão bom senso que acreditamos não precisar de mais do que aquele que já temos (Descartes dixit). Andamos, assim, a ser embalados. E o sono tem sido confortável. Se ainda vai sendo é porque, como de qualquer bom sonho, não queremos acordar para a realidade.
Todos somos filhos de uma classe sem futuro histórico.
A desilusão das forças anti-democráticas no pós 25 de Abril, pelo caminho que a Revolução tomou, em nada tem que ver com os nossos actuais descontentamentos, embora tenham sido a sua expressão primeira. Se, pelo que digo acima, concordarmos que nos adaptamos todos muito bem a um regime social-democrata de índole capitalista (em que o primeira mantinha as aparências do que idealizavamos por princípio e o segundo introduzia o factor da perversão - porque era ele que continha o que desejavamos por ambição), então temos que concluir que nunca fomos, colectiva e individualmente, muito coerentes ou consequentes. Queriamos o melhor de dois mundos e ainda vivemos nessa ilusão. Por isso não temos, enquanto classe, futuro histórico. Porque fomos derrotados pelo individualismo, já não há classes.
Nem Sartre nem Aron. Somos todos Glucksmann. Ou como 'estas coisas de ismos já nem querem dizer nada'.
Não interessa se antes do 25 de Abril assinamos a folhinha da PIDE. Não interessa se no dia a seguir eramos perigosos maoistas. Até nos rimos dessas coisas. Somos, enfim, filhos dos nossos tempos. O que equivale a admitir que teriamos sido fervorosos inquisidores, perigosos jacobinos a espalhar o terror ou nazis, estalinistas ou trabalhistas consoante o espaço geográfico. Hoje em dia somos pela 'coisa'. Hoje em dia somos os tais 'nacionais-porreiristas' em que à força de sermos contra tanta coisa acabamos por ser a favor de coisa alguma. Ou, sendo a favor de tudo (regra geral, do último que fala), estamos pela situação. Estamos então ali no meio, como o Glucksmann, a juntar as mãos de Sartre com as de Aron. Só que hoje em dia já não existem nem Sartres nem Arons, apenas Glucksmanns. Hoje em dia reinam, bicéfalos, o pragmatismo e o situacionismo.
O sol brilhará para todos nós!
Os amanhãs que cantam chegaram há muitos anos. Todas as manhãs são boas para acreditar no sonho americano dum enriquecimento rápido e sólido. A revista Kapa pode ter acabado mas nunca houve tanto Yuppi a bater punho. Com empreendedorismo e mérito o céu é o limite. O sonho vende-se como a Coca-Cola e vicia como o tabaco. Em alternativa renova-se a esperança a cada raspadinha ou a cada sorteio do Euromilhões. E assim, construimos uma colectividade de individuos que ficam à espera da sua vez. Já todos nos julgamos apenas credores da sociedade. Mesmo os que fazem política e se julgam, de algum modo, os únicos intervenientes dignos na coisa pública.
Paris brûle-t'il?
Mas não nos enganemos no que concerne a perspectivas mais ou menos pessimistas da realidade. As coisas sempre foram mais ou menos assim. O famoso 'pantano lamacento' ou como Pepe prefere olhar para o esgoto do que para as gordas dos jornais. Mas também é escusada a perspectiva candida do bem que, individualmente, as pessoas bem intencionadas acreditam acrescentar à política. São absolutamente desnecessárias e esse exercício só as ajudará a adaptarem-se, mais rapidamente, à realidade. É, como foi para os nossos pais, o mesmo que ter ido à tropa. De resto duvido que os sistemas se regenerem. O nosso, está claramente a colapsar. Paris, não se enganem, já arde.