Terça-feira, 17 de Junho de 2014

Sosseguem os espíritos mais inquietos – não vou falar do desastre que ocorreu ontem em Salvador. Lamentar aquela segunda Alcácer-Quibir ultrapassa em muito os talentos do autor destes textos. Merecia antes ser cantada por um poeta – mas o nosso vate imortal já não pode fazer versos.

 

Vou antes falar de um acontecimento de não menor importância histórica, merecedor da mais profunda meditação. Perguntar-se-ão já os leitores que acontecimento recente pode sequer aspirar a rivalizar com a Salamina de Salvador, com a Agincourt da Bahia, com a Waterloo do Nordeste brasileiro. Não vos deixarei nem mais um segundo à mercê de tamanha ansiedade: Brilhante falou! Eurico Brilhante Dias, o luminoso militante do Partido Socialista, pronunciou-se acerca da crise de liderança que perfidamente tem perturbado o normalmente plácido partido.

 

Adivinho já que alguns leitores não ficarão particularmente impressionados com o facto. Não fala Brilhante com alguma frequência acerca destas matérias? É claro que sim. Mas o perclaro membro do Secretariado Nacional é um homem de tão radiantes luzes, de um espírito tão iluminado, que sempre que decide gratificar-nos com declarações públicas, não podemos deixar de nos quedarmos transidos de espanto e de profundíssima admiração. Mas o silêncio – seguramente venerador – que instintivamente se apodera de nós quando prostrados diante das sempre resplandecentes palavras de Brilhante não as honra nem a elas mesmas nem ao seu luminoso autor. As palavras devem ser compreendidas, analisadas, dissecadas até, de modo a podermos usufruir e lucrar da sabedoria nelas contida. Cabe-nos então de cada vez acordar do torpor em que elas nos puseram, mobilizar os nossos modestos recursos intelectuais de modo a podermos ponderar sobre o seu significado. Só assim poderão as palavras de Brilhante trazer para as nossas vidas a luz de que tanto precisam.

 

Disse Brilhante que as acções recentes de 45 deputados do grupo parlamentar do Partido Socialista envergonham o partido. Antes ainda de analisarmos as razões e a substância desta declaração, fiquemos uns momentos a admirar a forma, a escolha das palavras. A eloquência de Brilhante não reside, como costuma ser o caso de oradores mais vulgares, no exagero, na hipérbole, em pronunciamentos estrondosos, que, no fundo, não passam de mero fogo-de-artifício retórico. Residem antes na moderação, na contenção, na selecção precisa e acutilante das palavras. Um orador menos brilhante (perdoem-me os leitores este bem-intencionado jogo de palavras) teria ido em busca do efeito. Teria escolhido talvez expressões mais torneadas, mais bombásticas, e, por isso, mais artificiais. Poderia porventura ter dito que aquele fragmento do grupo parlamentar tinha feito o partido “corar de vergonha” ou “enrubescer de verecúndia”, ou que tinha “coberto de infâmia” o Partido Socialista. Outro orador, mais bíblico, poderia ter talvez acusado aqueles deputados de terem feito o partido “tropeçar na pedra do escândalo”. Outro ainda, mais dado à vulgaridade, teria ido buscar uma qualquer frase feita à sarjeta da Língua Portuguesa e ter dito, por exemplo, que aqueles representantes da Nação tinham feito o Partido Socialista “sentir-se como uma virgem num bordel”. Mas mesmo nisto se vê claramente a inteligência superior de Brilhante: ele compreende que as palavras não valem pelo estrépito que provocam, mas sim pela verdade que encerram. E por isso, só por isso, é merecedor da nossa mais profunda veneração e gratidão.

 

Mas que foi que fizeram os infames 45 para provocar esta reacção no virtuosíssimo Partido Socialista? De que modo levaram eles a que o Partido, qual donzela pudorosa, tenha coberto o seu afogueado rosto com o véu da inocência e corrido para o refúgio seguro dos seus aposentos castíssimos? Terão eles votado favoravelmente uma lei ou um tratado claramente nocivo do interesse nacional? Terão eles ignorado olimpicamente, por exemplo, uma iniquidade ou uma inconstitucionalidade flagrante? Terão eles colaborado, por acção ou omissão, com personagens sinistras em ataques contra o bem-comum? Terão eles descurado os seus deveres parlamentares, desprezado os seus eleitores, desrespeitado as normas de conduta da excelsa assembleia? Terão eles atentado contra o pudor e os bons costumes, descalçado as botas e as peúgas no hemiciclo, atirado ovos ao busto da República, escarrado para o chão dos Passos Perdidos ou passeado de ceroulas nas escadarias do Palácio de São Bento?

 

Nada disso, mas fizeram algo talvez ainda mais infamante. Elaboraram e assinaram (coro só de o mencionar) um abaixo-assinado em que requerem a realização de um congresso extraordinário, antecedido de eleições directas antecipadas para o cargo de Secretário Geral. Peço aos leitores mais exaltados que se acalmem. A vossa indignação é justíssima, os vossos impropérios contra os impertinentes 45 mais do que apropriados, mas lembremo-nos que estamos aqui para reflectir e compreender, não para julgar.

 

Os menos sensíveis talvez se espantem com o facto de algo desta natureza cobrir de vergonha todo um partido – e é para iluminação desses dignos leitores que aqui estamos. Perguntarão seguramente os mais distraídos que haverá de vergonhoso em semelhante iniciativa. Não pedem os 45 o mesmo que já várias federações distritais e ainda mais concelhias já pediram por todo o Portugal? Não pedem o mesmo que várias personalidades de grande prestígio no Partido e no país? Certamente que sim. É óbvio que a vergonha não reside, estritamente falando, no conteúdo do documento. Se assim o fosse, milhares e milhares de militantes do Partido Socialista estariam neste preciso momento a cobrir de vergonha o seu partido – o que é impensável. Certamente que alguém com a dimensão democrática de Brilhante jamais insinuaria que é ilícito dentro de um partido criticar ou querer substituir um líder. Um pensamento tão contrário aos valores democráticos é com certeza algo que nunca sequer ocorreria a um amante apaixonado da liberdade como é Brilhante. Não. Não é o acto de pedir ou o conteúdo do pedido que certamente envergonham, mas sim quem pede.

 

O lúcido membro do Secretariado Nacional compreende bem o que está em causa neste acto. Deputados da Assembleia da República, representantes da Nação portuguesa, estão a usar – diria até mesmo abusar – o seu cargo. Ao fazer isto, é evidente para Brilhante e para todos aqueles que partilham da sua clarividência, desrespeitam o seu mandato. Não vão tão longe, claro está, quanto fazer um uso impróprio dos seus privilégios parlamentares para proveito próprio ou dos que lhes são próximos. Não chegam ao ponto de, por exemplo, venderem o seu voto e a sua influência para beneficiar a quem mais lhes paga. Felizmente, o grupo parlamentar do PS ainda não é um lupanar, nem nunca ocorreria a uma pessoa de bem dizer semelhante barbaridade. Mas o que os infames 45 fizeram é quase tão grave: envolveram-se na política partidária.

 

Dirão os mais ingénuos que os deputados do PS, enquanto militantes desse partido, têm o direito de contribuírem para um debate que já está, de qualquer modo, lançado. Acrescentarão ainda que é um direito que detêm não só como militantes de um determinado partido, mas como cidadãos, e que o exercício do cargo de deputado não os priva do uso dos seus direitos constitucionais. Qualquer pessoa de bem não poderá senão concordar. Os direitos de um cidadão permanecem intactos durante o exercício do mandato parlamentar. Mas o nível de exigência ética, moral, da mais básica decência eleva-se abruptamente. Os deputados foram eleitos pelos portugueses para cumprirem funções parlamentares, e é isso que eles têm de fazer. Imagine-se um mundo em que os deputados ajam fora do estrito âmbito parlamentar, que se pronunciem sobre matérias fora da estrita competência da Assembleia da República, ou que desempenhem uma actividade, profissional ou de qualquer outra natureza, para lá do que lhes compete enquanto membros do parlamento. É um cenário dantesco, de provocar pesadelos. As tarefas que competem aos deputados podem ser limitadas, mas são claras, bem definidas e, sobretudo, são limpas. E nenhuma delas tem que ver com a porca da política.

 

É isto que cobre o PS de vergonha. Os deputados da nação envolveram-se na política. A política, como todos sabemos, é indecorosa, é repugnante, é suja. A política partidária, como Brilhante entende como ninguém, mais suja é ainda. Compete aos excelentíssimos deputados manterem-se puros como anjos, intocados como donzelas, bem longe da fétida cloaca da política. O mínimo que se pode exigir de um deputado é que não se meta na política. Os deputados que porventura são militantes do PS podem votar, como todos os outros militantes, de quatro em quatro anos, no candidato a Secretário Geral que entenderem – tal como, de quatro em quatro anos, os eleitores votam, em tempo de eleições legislativas, no partido que preferem. Mas uma vez depositado e contado o voto, os valores democráticos, a ética, a decência, o asseio exigem que tanto uns quanto os outros se remetam ao silêncio, e permaneçam candidamente alheios à badalhoquice da política.

 

Mas os ingratos 45 não compreendem ou não querem compreender estas verdades. Preferem aviltar os seus mandatos, emporcalhar o seu cargo, ultrajar o órgão de soberania de que fazem parte, atirando-se de borco para o meio da estrumeira. Isto, diz o clarividente Brilhante, envergonha claramente o Partido Socialista. Eu diria ainda mais, seguindo o corajoso exemplo do ilustríssimo membro do Secretariado Nacional: envergonha a Assembleia da República, envergonha o Estado, envergonha todo o país! Diz o iluminado Brilhante que eles assim desrespeitam o seu mandato. É evidente. Eu diria ainda mais: cada assinatura naquele documento é um escarro lançado à cara de cada cidadão deste país! Proclama ainda o lustroso Brilhante que fazem uma afronta ao Secretário Geral. É este talvez o seu pecado mais negro. Não só chafurdam no esterco, mas ainda se viram contra aquele que os quer manter limpos.

 

É para chafurdar no lodaçal, para focinhar no esterco que servem as lideranças partidárias. É o sacrifício que generosamente aceitam fazer quando se submetem ao escrutínio dos seus militantes. Ao faze-lo protegem os seus militantes e a generalidade dos cidadãos das mesmas sevícias. É um acto de generosidade, próprio de quem tem um coração enorme, uma alma caridosa, um espírito brilhante. Não merecem por isso senão a nossa mais profunda gratidão. E a protecção que oferecem estende-se não só aos cidadãos em geral, mas muito especialmente aos deputados, para quem a pureza ainda importa mais. É por isso que cabe à liderança decidir, aos deputados votar. Cabe à liderança declarar, aos deputados acenar. Cabe à liderança planear, aos deputados seguir. Dirão talvez os menos atentos que isto reduz o papel dos deputados a um mero fazer número. Esquece quem assim fala que em democracia é no número que reside a força e a legitimidade de quem aspira a governar e a bem-fazer. Nisso os deputados são fundamentais – e desempenham um papel de uma enorme dignidade.

 

É por isso que se pede aos deputados que se calem. É que é no silêncio, ou, quando o silêncio é impossível, na palavra de circunstância, que se protege a dignidade e a pureza daqueles que queremos manter em estado de inocência. É essa, aliás, a lição que nos tem ensinado o nosso muitíssimo admirado Presidente da República – uma lição que os ultrajantes 45 deviam já ter aprendido. Só aqueles que se dispuseram a enfrentar o fedor infernal da política – e sobretudo aqueles que, como Brilhante, o fazem com tanta coragem e com tanto brilho –, só a estes, dizia, é que deve ser reservado o ónus de se pronunciar sobre matérias de natureza política, ainda para mais a partidária.

 

Não terá talvez a cintilante inteligência de Brilhante encontrado escondido algures naquela arca das maravilhas que são os estatutos do Partido Socialista uma regra semelhante à famosa “lei da rolha” do PSD, a regra que proibia que, em tempo de eleições, os militantes do partido criticassem a liderança. Uma regra como esta não é de todo necessária no Partido Socialista. O Partido Socialista tem um dirigente como Brilhante para mostrar o caminho a todos os seus militantes, e sobretudo aos deputados. Basta-lhe para isso apelar àquilo a que Brilhante e o seu líder têm apelado tanto nos últimos tempos: à lealdade, à decência, em suma, à ética. É que a ética cabe e compete a todos; a política, pelo contrário, como nos fez ver Brilhante, essa é só para alguns.  



publicado por Fábio Serranito às 20:18 | link do post | comentar

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