Qualquer semelhança não será pura coincidência
Depois dos pontos positivos que referi no último texto não posso deixar de referir que as mesmas entidades que acabaram por se portar bem nesta última decisão (Banco de Portugal e Governo) não estão isentas de culpa no processo que nos fez chegar aqui.
Por um lado, depois de vários escândalos bancários (e de vários Governadores do BdP com sensibilidades políticas diversas, diga-se em abono do rigor e da coerência), o regulador sempre se mostrou incapaz de avaliar e informar os mercados sobre a realidade dos riscos, já para não falar de os prever ou evitar. No decorrer de vários escândalos bancários, o Banco de Portugal, bem como os sucessivos Governos, não foram nunca capazes de encontrar uma solução atempada para estas crises, sendo obrigados a agir apenas quando não existia mais alternativa para evitar a falência (sejamos claros, é disso que se trata) dos bancos em causa. O expoente desta incapacidade (vamos admitir que é apenas isso, porque poderá ser conivência, o que é mais grave) foi dado no caso do BES, quando o Governo e o Banco de Portugal garantiram a solidez do Banco Espírito Santo apenas um mês antes de ele ser intervencionado, promovendo o investimento no seu aumento de capital e, assim, hipotecando a credibilidade das suas próprias afirmações futuras. Também não ajuda que se tenha sabido, pela voz de Carlos Costa, de que o BdP tinha conhecimento de irregularidades desde, pelo menos, Setembro, apesar de nada ter feito até agora.
O comportamento de sucessivos Governos e administrações do Banco de Portugal funcionam como uma espécie de história de ‘Pedro e o Lobo’, mas ao contrário: querendo garantir confiança no sistema bancário, os responsáveis públicos têm sistematicamente garantido não haver qualquer perigo até ao momento em que já não o conseguem fazer sem se rirem. Convenhamos que não há nada pior para a confiança no sistema bancário do que gerar-se a ideia de que, além de não se poder confiar nos bancos, não se pode confiar na regulação e em quem tem por função fiscalizar os bancos. Isto é muito, muito perigoso e, nesta matéria, a culpa não devia morrer solteira.
Quero ainda salientar um ponto que, não sendo em abstracto desejável, me parece positivo nesta solução: a responsabilização dos investidores financeiros, seja de detentores de acções ou de obrigações (embora neste último caso ainda não se perceba bem quem será responsabilizado e quem não será).
Vamos ver se nos entendemos, um investimento (e um investimento em dívida, embora diferente de em capital, não seixa de ser investimento) implica sempre um grau de risco. É essa a lei do capitalismo, talvez até mais que isso, da economia em geral. Qualquer empresário que invista numa empresa pode acabar a perder dinheiro se o negócio não funcionar, não é aceitável que para o grande capitalismo financeiro exista uma espécie de protecção em que se nacionalizam só os prejuízos, mas sempre se protegem os lucros e a detenção de capital.
Sei que muitos verão isto, incluindo gente que eu muito admiro, como uma violação para quem investiu as poupanças, resultantes do seu esforço de anos, em acções (ou obrigações). Sei que durante anos se têm promovido as aplicações financeiras como uma forma de poupança, não são; as aplicações financeiras são uma forma de investimento, podem ser uma aplicação das poupanças, mas não são poupanças, porque implicam necessariamente risco. Quem deseja apenas poupar tem para isso os depósitos a prazo, estes sim, sem risco e garantidos. É absolutamente aceitável que as pessoas procurem as aplicações financeiras como forma de fazer crescer as suas poupanças, mas existe o risco inerente, que no caso do BES se verificou; foi para diluir esse risco, exactamente porque ele existe sempre, que se inventou a diversificação das carteiras de investimento. As poupanças, por definição, têm como objectivo guardar o que se amealhou, a procura da mais valia é outro business e esse implica risco. Se as aplicações financeiras não tivessem risco, não haveria razão para a própria existência das contas a prazo.
Se os investidores foram lesados por práticas de gestão ruinosas, é outro assunto e já defendi (no texto anterior) que espero que a justiça o resolva. A família Espírito Santo continua a ter património para ressarcir, em parte pelo menos, aqueles que prejudicou. Quanto ao facto de, apenas há um mês, a mesma entidade que agora decidiu responsabilizar o capital ter garantido a solidez do investimento, parece-me que talvez também aqui haja espaço para intervenção judicial, pelo menos contra quem prestou tais declarações.
Apesar de tudo, nomeadamente do inegável prejuízo para investidores (grandes e pequenos, enganados ou não), entendo que é positivo que sejam os investidores a pagar o grosso da factura de um investimento que correu mal, tal como teriam (e tiveram) os lucros se corresse bem. O que é competência da justiça resolver não entra para a questão.
Curioso não é encontrar tantos opositores da responsabilização de investidores à esquerda (embora não deixe de o ser), verdadeiramente curioso é encontrar tantos que o defendam hoje à Direita, contrariando tudo o que disseram sobre os investidores em dívida pública. Já não é inegável que isso afecta a confiança dos mercados, como aliás hoje se viu com as acções do BCP? Ou agora, no caso da banca, os custos já são transitórios e menores que os benefícios, como muita gente à esquerda tem defendido em relação a uma restruturação da dívida pública?
E já agora, a protecção contra credores já é um instrumento útil para salvar empresas em dificuldades, mas com hipóteses de recuperação renegociando as suas dívidas? Deixem-me salientar (porque haveria muito melhores exemplos de restruturações empresariais, com sucesso, que passaram por uma protecção contra credores) que ter hipóteses de recuperação não me parece ser o caso do Grupo Espírito Santo, mas não é todos os dias que se tem um Ricardo Salgado a pedir protecção contra credores e não protecção aos credores.
Como explicarão os neoliberais no Governo que a protecção contra credores não implica que os investidores nunca mais confiarão naquela empresa, como têm defendido, contra todos os exemplos históricos, em relação aos Estados?
Do capital não espero ideologia, como já tantas vezes foi explicado, só pragmatismo. Confesso que as contradições dos neoliberais também não me chocam, só chocariam se eu não achasse que as ideias todas que propalam são apenas justificações para um programa político que mais não é que a defesa dos interesses do capital, apesar de, por vezes, terem consciência que têm de deixar as tretas ideológicas à porta para evitar uma catástrofe. Foi o caso.
O que me espanta é que ainda tanta gente acredite neles…