Uma denúncia anónima clamou dos abismos: Pedro Passos Coelho, o honestíssimo Primeiro Ministro de Portugal, teria recebido, enquanto exercia o mandato de deputado em exclusividade, a simpática quantia de 5000 euros mensais de uma empresa chamada Tecnoforma. Uma denúncia anónima, em princípio, merece ainda menos crédito que o Grupo Espírito Santo, pelo que a matéria seria de fácil resolução. Bastaria encontrar a resposta a duas perguntas: recebeu Pedro Passos Coelho aquela quantia da Tecnoforma?, se sim, estava Pedro Passos Coelho a exercer o mandato em exclusividade? Duas perguntas apenas, duas simples perguntas. O leitor mais ingénuo pensará então que isto é um assunto de fácil solução. Pergunte-se ao próprio Passos Coelho, que todos têm por honesto, e tudo ficará esclarecido quando, como se espera, ele desmentir a infame denúncia.
Mas logo o leitor ingénuo cai em embaraço: a verdade é que o próprio Pedro Passos Coelho, que se suporia ser quem estaria mais bem informado a este respeito, não sabe, não tem a certeza, não se lembra. Felizmente, revelações recentes permitem avivar a sua memória. Não se lembrava se tinha exercido o seu mandato em regime de exclusividade. Pois entretanto viemos a saber que nim: não houve declaração de exclusividade durante o mandato, mas houve uma depois do mandato, em virtude da qual lhe foi atribuído um subsídio a que de outro modo não teria direito. Para comprovar que tinha de facto exercido o mandato em exclusividade, Pedro Passos Coelho assinou uma carta afirmando isso mesmo e submeteu cópias das suas declarações de rendimentos para o comprovar. Nada nestes documentos indica que ele tenha auferido o avultado rendimento proveniente da Tecnoforma ou de qualquer outra fonte. Mais tarde, numa entrevista em 2009, o mesmo Pedro Passos Coelho declarou publicamente que tinha exercido o mandato em regime de exclusividade, e que a sua remuneração enquanto deputado tinha sido a sua única fonte de rendimento durante aqueles oito anos. Implicitamente, isto significa que não recebeu qualquer remuneração da Tecnoforma enquanto foi deputado. Nada indica, portanto, que Pedro Passos Coelho tenha agido de forma pouco própria. As suas próprias declarações o confirmam. Caso encerrado.
"Então, perguntará o ingénuo leitor, qual é o problema?" É que Pedro Passos Coelho, mesmo assim, não tem a certeza se é honesto. É certo que ninguém poderá verdadeiramente acreditar que Pedro Passos Coelho, um homem sério, honrado, em suma, um referencial de ética, possa ter feito aquilo de que explicita e implicitamente o têm vindo a acusar: 1. ter-se apropriado de um subsídio a que sabia não ter direito; 2. ter fugido aos impostos; 3. ter prestado declarações falsas para conseguir o acima mencionado. É demasiado incrível – e todos nós confiamos na palavra do Senhor Primeiro Ministro, mesmo quando essa palavra data de uma época em que ele ainda não o era. Pedro Passos Coelho está portanto acima de qualquer suspeita. Ninguém poderá desconfiar da sua honestidade.
Excepto, aparentemente, o próprio Pedro Passos Coelho. É que Pedro Passos Coelho é um homem que desconfia de si mesmo. Aquilo que o Pedro Passos Coelho do passado afirmou sem dúvidas e hesitações, o Pedro Passos Coelho do presente, Primeiro Ministro da República Portuguesa, é incapaz de afirmar. Agora teve de pedir informações à Assembleia da República acerca do seu estatuto enquanto deputado. Em 2009 não precisou. Agora teve de pedir à Procuradoria-Geral da República esclarecimentos a propósito do seu vínculo com a Tecnoforma, temendo que possa ter havido algo de menos próprio. Em 2009, em 2000 e em 1999, não tinha dúvidas nenhumas: não houve vínculo nenhum. Não se lembra, esqueceu-se, foi há já muito tempo.
Os leitores mais cínicos porventura olharão com alguma desconfiança para este esquecimento. Os leitores mais cínicos que me desculpem, mas essa desconfiança é indigna de uma pessoa de bem. O cinismo vangloria-se de ser uma forma mais lúcida de olhar a vida, mas, na sua sanha de ver o mal em tudo, é cego para aquilo que mais abunda no mundo: as boas intenções, a honestidade, os erros inocentes. Aquilo que os cínicos poderiam interpretar como um expediente dilatório é, na realidade, um esquecimento perfeitamente compreensível. Certamente ninguém espera que uma pessoa se recorde de quais foram os seus rendimentos há 16, 17 ou 18 anos. Eu confesso que não me lembraria. E quem me conhece sabe que tenho uma memória prodigiosa, capaz de conter factos que remontam aos tempos em que Príamo ainda reinava em Tróia. Mas a vida de Pedro Passos Coelho, nestes anos que entretanto passaram, foi tão cheia de actividades, de acontecimentos e sucessos que é perfeitamente normal que se tenha esquecido do que fez no século passado. Ora vejamos. Desde que saiu do Parlamento, Pedro Passos Coelho trabalhou na Tecnoforma e em várias outras empresas, tentou várias vezes fazer-se eleger Presidente do PSD, fez-se finalmente eleger Presidente do PSD, disputou eleições legislativas e venceu, formou Governo, governou e – consta – salvou Portugal. É muita coisa para uma vida inteira, quanto mais para um período inferior a duas décadas. É normalíssimo que haja certos pormenores, por exemplo, ter recebido ou não uma avultada quantia durante um período de tempo relativamente longo, que acabem por escapar.
Mas o esquecimento e as dúvidas de Pedro Passos Coelho não são simplesmente compreensíveis, são também uma manifestação do seu carácter profundamente filosófico. Uma pessoa dotada de um carácter superficial e pouco inquisitivo não teria dúvidas: ou bem que é honesto e sabe-o com certeza, ou bem que não o é, e sabe-o também. Mas Pedro Passos Coelho está numa situação de paralaxe. Não sabe se é honesto ou se não é. Outros, mais intelectualmente arrogantes, perante uma aporia desta natureza, embarcariam numa viagem de auto-descoberta, explorando os arquivos dos seus documentos e da sua alma em busca da verdade. Mas Pedro Passos Coelho além de sábio é também modesto. Ecoa nele a profunda sabedoria dos Antigos, que proclamavam a máxima que ecoa pelos séculos: “gnothi sauton” – que é como quem diz, para aqueles que só falam bárbaro, “conhece-te a ti mesmo”. "Gnothi sauton" é uma exortação que nos convida a todos nós a dedicarmos a nossa vida a esta nobilíssima missão. Mas é, sobretudo, um reconhecimento de quão pouco conhecemos e compreendemos da nossa própria condição. É, portanto, ao mesmo tempo uma exortação e uma confissão de ignorância.
Pedro Passos Coelho, segue, pois o exemplo dos Antigos, e mostra ser detentor de uma ignorância que muito o honra, uma ignorância verdadeiramente socrática – a exemplo de Sócrates Ateniense, filho de Sofronisco, do demo de Alopece, o filósofo. Mas Passos Coelho segue o exemplo do Sócrates Ateniense noutro aspecto ainda. É que o reconhecimento da sua ignorância servia para o filósofo como um primeiro momento num projecto obsessivo de busca pela verdade – um primeiro momento fundamental para se libertar de suposições e teses inexplícitas sem fundamento. É uma tarefa de monta, e o filósofo, conhecendo as suas limitações, sabe que não a consegue cumprir sozinho. Por isso, sai pela cidade a interrogar quem esteja disposto a conversar com ele, na esperança de que, juntos, consigam aproximar-se aos poucos da verdade. Pedro Passos Coelho reconhece também ele que sozinho não consegue. Por isso, vai para a ágora e pergunta à Assembleia da República, à Procuradora-Geral da República, a quem quer que seja preciso, de modo a desvendar este mistério: se Pedro Passos Coelho é ou não um homem honesto. Não me surpreenderia se, novamente a exemplo do Sócrates Ateniense, ele daqui a pouco começasse a fazer a todos com que se cruzasse perguntas difíceis e embaraçosas. “Que é a Tecnoforma?” “Que é a exclusividade?” “Que é um deputado?” “Que é uma declaração de impostos?” “Que são 5000 euros por mês?” “Que é a ética?” “Que é a hipocrisia?”
Termino, pois, fazendo um apelo aos leitores. Quando daqui a tempos virem Pedro Passos Coelho caminhando com olhar esgazeado pela rua, porventura até mesmo descalço, a exemplo de Sócrates Ateniense, fazendo a este e àquele estas e outras perguntas – não o ignorem, não lhe virem as costas. Façam como eu: conversem com ele, nem que seja durante alguns minutos, e digam-lhe quão honesto ele realmente é.