Segunda-feira, 6 de Outubro de 2014

"18.

Sim, foi essa

A primeira miséria, a deserção

Dos deuses. A segunda, a sua morte,

Já na morte de Pã anunciada

Pelo lamento dos bosques, o clamor

Lutuoso das Ilhas do Egeu.

Esse grito o escutou o outro Friedrich,

Dionysos de seu nome, o europeu,

O anunciador, o que caminha

Sobre águas estagnadas e parece,

Ao afundar-se, desenhar no lodo

Um mapa para o qual não há leitura.

 

19.

A segunda miséria: não a morte

Do deus crepuscular, do invasor

Que proibiu a imaginação

E tirou à tragédia dignidade -

Pois muito longe de morrer está esse.

A morte, uma falência quotidiana

Da limpidez, da arte e da divina

Coloquialidade com o mistério

E com o semelhante, a que extinguiu,

Como um sopro de fogo na planície,

Ao mesmo tempo o vivo e o seu rasto.

 

20.

E veio outra miséria, em interlúdio:

A miséria da interpretação

Que tudo trai. Os textos, os tão belos

Textos do ódio e da melancolia

Carragavam os sacos dos soldados

Como pães doces, abolorecidos,

Alimentavam quem? Persas, de novo.

Persas vindos do Norte, equivocados

Com o som do poema, com a ira

Formosa do poema.

 

23.

A terceira miséria é esta, a de hoje.

A de quem já não ouve nem pergunta.

A de quem não recorda. E, ao contrário

Do orgulhoso Péricles, se torna

Num entre os mais, num entre os que se entregam,

Nos que vão misturar-se como um líquido

Num líquido maior, perdida a forma,

Desfeita em pó a estátua."

 

In 'A Terceira Miséria', de Hélia Correia



publicado por Rui Moreira às 22:53 | link do post | comentar

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