"18.
Sim, foi essa
A primeira miséria, a deserção
Dos deuses. A segunda, a sua morte,
Já na morte de Pã anunciada
Pelo lamento dos bosques, o clamor
Lutuoso das Ilhas do Egeu.
Esse grito o escutou o outro Friedrich,
Dionysos de seu nome, o europeu,
O anunciador, o que caminha
Sobre águas estagnadas e parece,
Ao afundar-se, desenhar no lodo
Um mapa para o qual não há leitura.
19.
A segunda miséria: não a morte
Do deus crepuscular, do invasor
Que proibiu a imaginação
E tirou à tragédia dignidade -
Pois muito longe de morrer está esse.
A morte, uma falência quotidiana
Da limpidez, da arte e da divina
Coloquialidade com o mistério
E com o semelhante, a que extinguiu,
Como um sopro de fogo na planície,
Ao mesmo tempo o vivo e o seu rasto.
20.
E veio outra miséria, em interlúdio:
A miséria da interpretação
Que tudo trai. Os textos, os tão belos
Textos do ódio e da melancolia
Carragavam os sacos dos soldados
Como pães doces, abolorecidos,
Alimentavam quem? Persas, de novo.
Persas vindos do Norte, equivocados
Com o som do poema, com a ira
Formosa do poema.
23.
A terceira miséria é esta, a de hoje.
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que se entregam,
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua."
In 'A Terceira Miséria', de Hélia Correia