E julgareis qual é mais excelente,
Se ser do mundo Rei, se de tal gente.
Muita razão tinha Camões quando, na boca de Vasco da Gama, apelidou a pátria nossa amada de “ditosa”. Ditosa ela é sem dúvida: ditosa pelo seu clima ameno, pela beleza dos seus campos, dos seus bosques, dos seus montes, rios e praias; ditosa pelos seus belíssimos monumentos, relíquias e memoriais de um passado grandioso; ditosa pela doçura e expressividade da sua língua e pela grandeza dos poetas que a embelezam; mas sobretudo ditosa pelas suas gentes acolhedoras, boas e honestas. Mas a grande dita de Portugal reside sobretudo nas suas (perdoe-me o leitor o galicismo) elites, na fina flor da sua gente, na crème de la crème da Nação Portuguesa.
Afortunada pátria! Felícissima nação! Mais de cem anos passaram desde a implantação da Primeira República, um século inteiro desde que o princípio da hereditariedade foi expurgado do ordenamento jurídico. No entanto, aquilo que poderia ter resultado numa calamidade impensável, numa segunda Alcácer-Quibir dos nossos mais assinalados barões, na anulação e extinção da nossa nobreza, da nossa aristocracia, em bom vernáculo, dos nossos melhores, afinal, para nossa boa-fortuna, teve efeitos muito diferentes. Sursum corda!, que é como quem diz, alegremo-nos!, pois nem mesmo um século sob o jugo de princípios igualitários conseguiram escorraçar da pátria as suas gentes respeitáveis.
Os riscos, porém, eram tremendos. Sem um princípio consagrado por meio do qual se pudesse julgar a quem devem ser entregues os mais altos cargos e as mais pesadas responsabilidades, corria a pátria o perigo de se ver nas mãos de gente sem préstimo, gente desonesta, gente incapaz – gente, em suma, que a conduzisse para a ruína. A ideia republicana, justiça lhe seja feita, é bem-intencionada: pôr acima de quaisquer outras considerações, incluindo o sangue, as relações familiares e de amizade, o mérito. Convenhamos que é uma ideia que merece aplauso. Os melhores, os mais capazes, os mais honestos devem, em teoria, ser aqueles nas mãos dos quais devem estar depositados o poder e a responsabilidade.
Mas quem deve ser o juiz do mérito? O princípio republicano (ainda que não aplicado por inteiro pela Primeira República) nisso é claro: o povo. Mas o povo, como todos sabemos, pode ser acolhedor, bom e honesto, mas pouco entende dos arcanos do poder e facilmente se perde neles. Por isso, como Teseu no labirinto, precisa da ajuda de uma Ariadne para encontrar o seu caminho e derrotar o Minotauro do populismo, que só leva ao caos e à desordem. Qual Ulisses, precisa de quem o amarre ao mastro do navio, para que não se precipite no mar e na ruína, seduzido pelo canto das Sereias que lhe prometem bens meramente aparentes e enganadores. Precisa, portanto, de uma mão benévola que o guie e que o ampare, que o acalme nas suas preocupações, que lhe acaricie a cabeça em jeito de consolo, que o proteja e o embale. A vida do povo é já árdua o bastante para que tenha ainda de se apoquentar com matérias tão complexas e para as quais (abençoada pátria!) não escasseia quem tenha o engenho de as tratar.
Nisto Portugal é superlativamente ditoso. Por feliz coincidência, quase todos aqueles a quem outrora o poder estava entregue em virtude das suas relações de parentesco e amizade estarão agora em cimeiras posições, mas em virtude do seu reconhecidíssimo mérito. É testemunha bastante disto que a larga prole daqueles nossos egrégios avós – ou, na sua falta, quem fielmente a serve – ocupe agora muitos dos mais importantes e influentes cargos no Estado, na Banca e nos Negócios. Felicíssima pátria! O princípio de selecção das nossas elites mudou radicalmente – mas, por feliz casualidade, as elites continuam (descontando um ou outro caso mais duvidoso) a serem as mesmas. É isto um claríssimo sinal de que nós Portugueses fomos fadados a sermos sempre governados por gente boa e respeitável, sempre a mesma, porventura em virtude de um qualquer favor divino.
Reflectir condignamente acerca deste profundíssimo mistério ultrapassa em muito os meus dotes intelectuais. Outros países, certamente menos afortunados, não gozam deste favor. Nesses outros países a introdução do princípio do mérito e de outros mecanismos com o intuito de constituir uma sociedade mais igual levaram a uma substituição das suas elites. São outros agora que os governam, para o bem e para o mal. Mostra isto que aqueles que antes os governavam não deveriam estar onde estavam. Em Portugal, continuaram onde sempre estiveram, o que prova que já estavam onde deveriam estar. E é esta estabilidade a causa da tanta fortuna.
Outros países fazem uso constante, oportuno e eficaz de mecanismos de controlo, de regulação e de fiscalização daqueles que ocupam cargos de poder não só na Política como nos Negócios mais importantes. Nesses outros países a Imprensa vigia, fareja e esgravata, procurando erros e mesmo desonestidades naqueles que mais responsabilidades detêm na condução dos destinos colectivos dessas nações. Há quem veja nestas circunstâncias sinais de que esses outros países são mais democráticos, justos e funcionais. Mas talvez não seja esse o caso. Pode antes ser que a necessidade de tais mecanismos e de uma Imprensa hiperactiva seja, pelo contrário, sinal da falta de dimensão moral e de respeitabilidade das suas elites corruptas. O povo português, felizmente, vive bem sem esses expedientes, no sossego confiante de quem é quase sempre governado por gente respeitável.
São por isso absurdas as recriminações daqueles entre nós que se queixam da impunidade e da inimputabilidade dos nossos melhores, que acusam até de constituírem uma família – no sentido mafioso do termo. Dizem esses cínicos que as elites portuguesas nos arrastaram para a ruína, que têm vivido à custa do Estado e do Povo português, que têm exercido uma influência excessiva e indevida sobre a Política, que têm monopolizado os lugares mais importantes e influentes da nossa sociedade, e que têm constituído teias de favorecimento, interesse e influência que lhes permitem cometer impunemente as mais diversas ilegalidades, e que representam assim um risco para a democracia e para o Estado de Direito. Tudo isto é falso, tão falso que nem merece discussão. Todos sabemos que entre as elites portugueses não há escroques, só gente respeitável. E assim tem sido desde tempos imemoriais.
É portanto justíssimo que esta gente respeitável seja protegida pela Imprensa, poupada pelos Tribunais, ajudada pela Política, e, por fim, amparada pelo Povo. É que nada fizeram para merecer o infortúnio que sobre eles ocasionalmente se abate e não são de todo responsáveis pelas dificuldades que actualmente afectam Portugal. São em tudo diferentes dos desempregados, dos reformados, dos pobres, dos que vivem à custa do Estado e de todos aqueles que viveram acima das suas possibilidades – pessoas a quem nós outros nada devemos e que, para expiação das suas faltas e para bem do País, devem ser largadas ao seu próprio destino, para que aprendam a lição. As nossas elites desamparadas, que acidentalmente tropeçaram no infortúnio, estas elites inocentes, essas sim devem ser protegidas e acarinhadas. É, afinal de contas, uma questão de mérito e de justiça.
É que a última coisa que queremos é ajudar quem não merece e recompensar injustamente quem quase nos arruinou.