Imagine o leitor que é uma pessoa famosa, com nome na praça. Imagine o leitor que isso se deve não só a um cargo de destaque que ocupou durante vários anos, mas sobretudo às suas intervenções públicas vigorosas, que lhe valeram a reputação de paladino dos fracos e de campeão dos descamisados. Imagine ainda o leitor que isso o torna numa personalidade com razoável cotação na bolsa de valores da política, ao ponto de haver um pequeno partido interessado a tê-lo como cabeça de lista nas eleições para o Parlamento Europeu.
A ideia provoca calafrios ao leitor, agita-o até ao fundo mais fundo da sua alma. Não passou o leitor os últimos anos a lançar impropérios contra a política, essa porca, e sobretudo contra os políticos, eles todos ladrões? Não lutou o leitor durante tanto tempo para proteger os seus desprotegidos concidadãos contra os abusos daqueles canalhas? A primeira reacção será então sentir-se ofendido pela proposta – como uma senhora de bem se ofenderia caso lhe propusessem um emprego num bordel. Mas o leitor acalma-se, reflecte longamente e decide aceitar. É que esta é uma boa oportunidade de fazer ouvir a sua virtuosa voz, de continuar a combater pelas causas em que acredita. Os políticos, todos eles, podem ser uns escroques, mas o leitor nunca o será, porque o leitor tem moral, o leitor tem consciência, o leitor tem escrúpulos! Por isso, decide ir corajosamente à luta.
O leitor vai então à luta. Durante uma longa e dura campanha, expõe ao país as suas ideias e atrai multidões – multidões descontentes, mas ainda com esperança, que vêem no leitor o seu campeão contra uma classe política que as maltrata. As expectativas, apesar de tudo, não são muito altas. O leitor não é, de modo nenhum, um político profissional (nem nunca desejaria sê-lo, salvo seja) e isso é uma desvantagem num jogo à partida tão viciado. Além disso, o pequeno partido que o apoia é mesmo pequeno e nunca teve bons resultados nas várias eleições a que concorreu. Mas eis que chega o dia da eleição e o leitor triunfa! Relativamente falando, claro está. Muitos outros partidos conseguem mais votos, mas as expectativas eram baixas e foram superadas em muito. O leitor consegue ser eleito. Mais surpreendente ainda: não vai sozinho para Bruxelas.
O leitor, naturalmente, exulta! Mas, como pessoa responsável que é, tem consciência plena dos seus deveres e obrigações, e compreende que aquilo que lhe foi confiado nas urnas é para ser respeitado com zelo. Cabe agora ao leitor representar uma parte importante do eleitorado junto da magna assembleia dos eleitos da Europa. A cabeça está repleta de ideias e projectos, todos eles alimentados pelos mais altos ideais. Muito vai ser feito nos cinco anos do seu mandato!
O leitor chega portanto a Bruxelas cheio de esperanças e sonhos. Mas cedo descobre quão tolo e iludido foi. Descobre-o logo ao fim de um mês, quando, como pessoa responsável que é, de boas contas, vai verificar o seu saldo bancário e descobre, para seu horror uma avultada quantia. O coração pára de bater um instante. O leitor sente um abismo a abrir-se debaixo dos seus pés. A obscena quantia de dinheiro corresponde à remuneração que lhe é atribuída enquanto membro da magna assembleia. O leitor sente vergonha. Pensa primeiro que tudo nos trabalhadores do seu país, tantos deles a sobreviverem a custo com um salário mínimo de miséria. Aparecem-lhe diante dos olhos os milhares de rostos de todos os eleitores desfavorecidos que lhe confiaram o seu voto e que depositaram no leitor a sua confiança e a sua esperança. A noite que se segue é medonha. O leitor dá voltas e voltas na cama, ensopado de suores frios. Os escrúpulos não o deixam dormir. É inaceitável ter de receber uma quantia tão grande como salário. O leitor toma uma decisão.
Poderia o leitor talvez escolher abdicar do salário ou doá-lo por inteiro e continuar a exercer o seu mandato pro bono. Mas o leitor não é rico e precisa de se sustentar. Além disso, planeia trabalhar no duro na defesa dos interesses do seu povo (ao contrário dos políticos, esses bandidos), e é justo que seja remunerado por isso. Poderia então abdicar de parte do seu salário, e dedicar os cinco anos do seu mandato a lutar contra os altíssimos salários auferidos pelos membros da magna assembleia, apresentando moções, projectos de lei, fazendo perguntas, enfim, o que fosse preciso. Mas a descoberta da abjecta quantia na conta bancária abalou de tal modo a confiança e a determinação do leitor que já nem tem forças para isso. Além de tudo mais, o leitor teve uma epifania: Bruxelas é uma verdadeira Sodoma e só resta ao virtuosíssimo leitor seguir o exemplo de Lot e abandonar a cidade à sua perdição.
O leitor assim faz, com uma maldição nos lábios – mas lentamente. Tal como a comadre que olha para o relógio e diz que tem de mesmo de se ir embora, mas que vai ficando a tagarelar durante uma hora ou duas mais, assim o leitor anuncia que vai partir, lança impropérios contra o antro de perdição para o qual foi enviado, e deixa-se ficar. Entra-se depressa mas sai-se devagarinho. Durante este tempo, claro está, continua a receber a obscena quantia, sem que nisso haja qualquer contradição. É moralmente condenável que os representantes da nação recebam tanto – mas ninguém pode esperar que o leitor renuncie à remuneração. Já lhe basta o sacrifício que faz todos os dias ao ter de conviver com políticos, essas bestas, no seu habitat natural, enquanto não abandona o lugar infecto.
Fosse o leitor um político, que é como quem diz um safardanas, e poderia haver quem condenasse o facto de o leitor, a quem os eleitores entregaram um mandato, tivesse decidido abandoná-lo ao fim de tão pouco tempo, e depois de não ter feito nada senão amaldiçoar o cargo para que foi eleito. Poderia ainda haver quem questionasse as verdadeiras motivações por detrás desta decisão, quem estranhasse que a declaração de renúncia tenha sido acompanhada pelo anúncio de planos para concorrer a legislativas e mesmo a presidenciais. Haveria, enfim, quem se atrevesse a pensar que tudo não tenha passado de uma enorme fraude e que a campanha para as europeias não tenha sido senão um trampolim para chegar a poleiros mais altos. Claro que nada disto faz sentido: afinal de contas, o leitor não é um político, que é como quem diz um patife, mas sim uma pessoa de bem, um modelo de virtudes. O que o levou a renunciar a este cargo não foi senão escrúpulos, e o que o leva agora a querer concorrer a outras eleições, fundando, para esse efeito, um novo partido, não são senão um louvável sentido de dever e o desejo de se sacrificar pelo bem público.
O leitor, afinal de contas, não é um político, que é como quem diz um vigarista, e portanto pode usufruir dos privilégios da virtude. É que aos virtuosos, ao contrário dos biltres, não há nada que não seja permitido.