Vista à distância, a situação parece fazer pouco sentido. Um partido vence as eleições, os seus mais directos adversários sofrem uma derrota histórica – e é o líder do partido vencedor que vê a sua liderança contestada e que é obrigado a enfrentar uma rebelião. Os seus leais partidários do líder apontam, e bem, o absurdo. Em política, o normal é que as vitórias reforcem as lideranças, e que sejam as derrotas a derrubar os líderes. Como então fazer sentido deste aparente absurdo?
A política não é uma competição em que o vencedor leve tudo. Vencer uma eleição não é como ganhar um jogo de futebol. Num jogo de futebol uma vitória é uma vitória. É certo que uma vitória por um golo é menos impressionante que uma vitória por vários, mas o resultado final é o mesmo. Mas a política não é um jogo. O jogo esgota-se no próprio acto de jogar. Depois de um jogo, a vida continua. É certo que a vida certamente incluirá mais jogos, mas a vida é também muito mais do que uma sucessão de jogos. A política pode não ter a amplitude da vida, mas é certamente mais do que um jogo, em que vencer é um fim em si mesmo. Vencer eleições não é um fim em si mesmo. É antes aquilo que abre a oportunidade para exercer o poder, para governar, para deixar marca, para fazer diferente.
Nem todas as vitórias são iguais. Valem por aquilo que mostram e por aquilo que podemos fazer com elas.
É assim que se compreende que a vitória do PS nas últimas eleições para o Parlamento Europeu tenha desiludido e sido a causa próxima de uma crise interna. Num contexto nacional de enorme insatisfação com o Governo e com os partidos que o suportam, no meio de uma crise económica e social sem paralelos na história recente do país, seria de esperar que o maior partido da oposição tivesse um resultado impressionante. Isso seria o normal, se vivêssemos num tempo normal. Mas nesta época estranha em que vivemos, não basta esperar que quem tem agora o poder seja devorado pelas circunstâncias para que o poder caia no colo da oposição. Nestes tempos invulgares, o rotativismo entre os dois maiores partidos já não é garantido.
E é isso que o resultado das eleições para o Parlamento Europeu indiciam: um enorme descontentamento com os partidos que suportam o Governo, sim, mas também uma grande desilusão e alguma falta de confiança no maior partido da oposição. Este parece ser um sentimento transversal ao eleitorado português, ao ponto de constituir uma crise de confiança no próprio regime político.
É isto que os resultados indiciam. Mas que é que se pode fazer com estes resultados? Numas eleições como estas, muito pouco. A arquitectura abstrusa e pouco democrática da União Europeia, a fraqueza do Parlamento Europeu, e o pouco peso político de Portugal na Europa – tudo isto conspira para que as eleições europeias, em geral, pareçam ter pouca importância. Mas a verdade é que, no actual contexto político português, estas eleições valem também como um prelúdio às eleições legislativas. Foram, por assim dizer, um teste a todos os intervenientes políticos. Importará, portanto, reflectir sobre que possibilidades seriam abertas por uma eventual vitória do PS nas próximas legislativas, caso estes resultados fossem então replicados.
O que surge claro desta reflexão é de fazer gelar o sangue. Uma vitória curta do PS nas legislativas levaria a uma quase certa coligação com o PSD – um cenário a que foi feita alusão durante a última campanha eleitoral. Uma vitória curta levaria a algo que dói até pensar: à manutenção de pelo menos parte do actual PSD em funções governativas. Levaria ainda a algo talvez ainda mais assustador: à continuação, pelo menos em parte, das actuais políticas. Este é um cenário que qualquer pessoa que ame Portugal e que tenha consciência de quão errado, quão desastroso e quão destrutivo tem sido o rumo adoptado nos últimos anos deve a todo o custo rejeitar e combater.
Fazerem-se eleições e mudar de Governo para que se continue na mesma poderá ser o golpe que destruirá por fim o actual sistema político e que levará ao colapso do PS enquanto partido que pode aspirar a governar Portugal. O eleitorado tradicional do PS – e neste grupo incluo não só os militantes e simpatizantes indefectíveis, mas sobretudo aqueles eleitores que, como eu, tendem a favorecer políticas de centro-esquerda – dificilmente perdoará que este partido se torne cúmplice e aplique as mesmas políticas daqueles que têm vindo a arruinar o país nos últimos anos. Uma vitória assim arrisca-se a ser a derrota final do PS e daquilo que ele tem a obrigação de representar.
É por isso que o absurdo de contestar um líder que acabou de vencer uma eleição faz sentido. Aquilo que se exige e que um grande número de portugueses espera do PS é que seja uma verdadeira alternativa aos partidos que suportam o actual Governo; uma alternativa não por ser o seguinte numa sucessão rotativa no poder, mas uma verdadeira alternativa: no modo de compreender a situação actual do país, no projecto que tem para Portugal, até mesmo no modo de lidar com os portugueses e de fazer política. É urgente criar essa alternativa. Os resultados das eleições europeias mostraram que os portugueses não estão convencidos (e com razão, na minha opinião) que a actual liderança do PS tenha criado essa alternativa, e as expectativas de que seja capaz de a criar em tempo útil são poucas. É por isso que faz todo o sentido que a actual liderança seja contestada. E torna-se cada vez mais claro que só mudando a liderança poderá o PS aspirar a criar a alternativa política que sempre deveria ter sido.