Primeiro que tudo, uma confissão: o título deste texto é propositadamente enganador. Quem o leia pensará talvez que este texto é sobre o futuro ex-Rei de Espanha, ou, para os republicanos mais optimistas, sobre o seu sucessor. Mas não. Na realidade, vou falar de um outro monarca que tem sido muito debatido recentemente: António José Seguro.
Dir-me-ão os mais argutos que António José Seguro não é Rei nem Príncipe, que o PS é um partido político com regras, estatutos e que é, no limite, sujeito às leis e Constituição da República Portuguesa. Dir-me-ão ainda que há um número bastante alargado de órgãos e instituições que limitam o poder do Secretário Geral do PS e que, portanto, o PS não é uma monarquia. A isso respondo que nunca afirmei que António José Seguro fosse um monarca absoluto. O seu poder é limitado – e quão limitado é torna-se mais claro a cada dia que passa. Dir-me-ão ainda que o cargo de Secretário Geral do PS não é hereditário. A isso respondo que nem todas as monarquias são hereditárias e que existem e existiram ao longo da história vários exemplos de monarquias electivas. Há até monarquias com mandatos de duração limitada, como a monarquia malaia.
O que distingue uma monarquia de um sistema republicano não é nem o título, nem o modo de selecção, nem a duração do “mandato”, nem mesmo os poderes dos quais o chefe de Estado está investido. O que distingue estes dois sistemas é o facto de o monarca ser simultaneamente inamovível por meios constitucionais e irresponsável, isto é, inimputável. Os monarcas costumam ser inimputáveis, uma propriedade que partilham com as crianças e os doidos. Ora as crianças crescem e perdem a sua inimputabilidade; os doidos, alguns deles pelo menos, curam-se e voltam a ser imputáveis. Como o “mandato” dos monarcas é por norma vitalício, a sua inimputabilidade costuma também ela ser perpétua. Mas talvez mais importante do que isto é o facto de os monarcas, uma vez instalados, não poderem ser removidos. Dir-me-ão que a história está recheada de exemplos de monarcas destronados ou que abdicaram – e de exemplos ainda mais numerosos de monarcas assassinados. Têm toda a razão. Mas todos esses exemplos têm uma coisa em comum: nenhum deles ocorreu de acordo com qualquer tipo de trâmite constitucional. É virtualmente impossível fazer que um Rei deixe de ser Rei sem o uso de coacção ou violência, isto é, senão por meios extra-legais.
“Mas que tem isto que ver com António José Seguro?”, perguntarão com alguma impaciência os leitores. A acreditar nas dúvidas de Maria de Belém Roseira, Presidente do Partido Socialista, tudo. É que Maria de Belém Roseira é atormentada por uma dúvida que poderemos caridosamente caracterizar como peculiar: não sabe se a ordem de trabalhos da próxima reunião da Comissão Nacional do PS, convocada para discutir a realização de eleições directas antecipadas e um congresso extraordinário, é legal. Pediu, por isso, que a Conselho de Jurisdição do PS se pronuncie sobre o assunto, não esteja ela a onerar a sua consciência cometendo, ainda que sem intenção, uma ilegalidade.
“Mas qual é a substância dessa dúvida?”, perguntarão em uníssono tanto os perspicazes quanto os ingénuos. Não referem os estatutos do PS que a Comissão Nacional pode marcar eleições directas e congressos? Refere. Não dizem que o mesmo pode acontecer por iniciativa da maioria das federações distritais, caso representem a maioria dos militantes do partido? Com certeza. No limite, não pode o próprio Secretário Geral, por sua iniciativa, fazer o mesmo? É o que está lá, preto no branco.
Mas Maria de Belém tem dúvidas, e merece a nossa compreensão e solidariedade. E, como pessoas de bem que somos, é nosso dever analisar e, se tal estiver ao nosso alcance, responder a essas dúvidas, e dar algum sossego à sua alma atormentada.
Deixemos de lado o paradoxo que as dúvidas de Maria de Belém implicam: que as primárias propostas por Seguro, que não estão nos estatutos, são legais, mas que directas antecipadas e congresso extraordinário, que estão lá para todos lerem, podem não o ser. Como sabemos, todos os textos estão sujeitos a um número indeterminado de possibilidades hermenêuticas e é compreensível que uma senhora com um nome tão bíblico tenha uma leitura, por assim dizer, um pouco cabalística do texto fundamental do Partido Socialista. Consideremos antes os argumentos que dão corpo e sustentação às inquietações de Maria de Belém.
Diz Maria de Belém que o PS tem um Secretário Geral (o que é incontroverso), e que, portanto, a Comissão Nacional não pode convocar directas antecipadas. Quer ela dizer com isto que o Secretário Geral tem um mandato e que o mandato tem de ser cumprido até ao fim. Mas qual é então o sentido de conferir, tal como afirmam os estatutos, à Comissão Nacional o poder de convocar directas e congresso? Claramente, de acordo com Maria de Belém, a Comissão Nacional só as pode convocar se o cargo de Secretário Geral do PS estiver vago. Sede vacante, a Comissão Nacional, qual Camerlengo da Igreja de Roma, toma conhecimento do ocorrido e limita-se a dar início ao processo que leva à escolha do augusto sucessor. Tratar-se-á de uma formalidade, ainda que revestida de uma enormíssima dignidade. Mas sejamos generosos e concedamos que esse poder, explicitamente referido nos estatutos, é mais que meramente formal e que corresponde a algo de substantivo. De acordo com a interpretação de Maria de Belém, esse poder só poderia ser um: o de recusar, mesmo em caso de vacatura do cargo, dar início ao processo de eleição do sucessor. No limite, uma Comissão Nacional mais ousada poderia, qual Colégio Cardinalício dos loucos séculos XII e XIII, adiar sine die a eleição do novo Secretário Geral. Uma hipótese medonha, convenhamos. Será porventura para prevenir um desastre desta natureza que os estatutos conferiram às federações distritais, cumpridos determinados requisitos, o poder de convocar eleições directas e congresso. Assim se vê a magnitude da sabedoria dos autores dos estatutos: para evitar os abusos do Colégio Cardinalício, confere às federações, qual concílio da Igreja, o poder de os impedir.
Mas levemos o argumentário da perplexa senhora um pouco mais longe. Poderá então o próprio Secretário Geral ele mesmo convocar eleições directas antecipadas e um congresso extraordinário? De acordo com a excelente senhora, não. Ou melhor, nim. Se há um Secretário Geral para convocar as eleições, o Secretário Geral não as pode convocar. Isto porque há um Secretário Geral, logo, é ilegal convocar eleições para substituir o Secretário Geral. Mas há uma maneira de o Secretário Geral, se estiver para aí inclinado, fazer o quase impossível. Terá ele mesmo de criar a vacatura, ou demitindo-se ou suicidando-se. Deixemos de parte esta última possibilidade, que é demasiado horrenda de contemplar. Se um Secretário Geral do PS quiser, por qualquer motivo, acelerar o processo eleitoral, não lhe restará senão o caminho seguido por vários monarcas nos tempos recentes. Terá de seguir o exemplo do nosso amigo Juan Carlos I de Espanha, de Beatriz dos Países Baixos, de Alberto II, rei dos Belgas, ou até do muito admirado Papa Bento XVI. Só assim, apenas assim, fazendo o sacrifício supremo, poderá ele convocar as miríficas eleições.
Admiremos então a maravilhosa subtileza do texto sagrado do PS. Podia dizer isso mesmo, a saber, que só em caso de vacatura do cargo de Secretário Geral podem ocorrer eleições antes de tempo. Mas não: o texto obriga-nos a interpretar, a pensar, a reflectir ponderosamente sobre o seu significado. Diz que o Secretário Geral pode fazê-lo – e diz a verdade. Mas a implicação, o significado obscuro – e tanto mais verdadeiro quanto mais obscuro é – é que só o pode fazer se generosamente abdicar.
E agora parece fazer sentido o título deste texto. António José Seguro, como qualquer Secretário Geral do PS, é, afinal de contas, um monarca – um monarca eleito, claro está, como o Papa, um monarca com um mandato de duração limitada, como o Rei da Malásia, mas todavia um monarca. Tal como qualquer outro monarca, só há duas autoridades que podem desfazer um Secretário Geral antes do término do seu mandato: ou o próprio ou Deus. Deus, arrancando-o deste mundo; o próprio, neste aspecto mais poderoso ainda, ou abdicando ou antecipando o fim natural da sua vida.
Fiquemos uns momentos a contemplar solenemente as maravilhas contidas nos estatutos do Partido Socialista, e inclinemo-nos respeitosamente perante a inteligência de Maria de Belém, a reveladora destas verdades. Dirão os cínicos que a interpretação de Maria de Belém é absurda, e que as suas consequências são monstruosas. Dirão que, no limite, um qualquer Secretário Geral hipotético poderia roubar bancos, degolar cães, estuprar velhinhas, e mesmo assim, se recusasse renunciar, continuaria Secretário Geral até ao fim natural do seu mandato. Ou seja, o Secretário Geral seria, dentro do Partido Socialista, também ele inimputável, como os monarcas seus colegas. Dirão ainda que, caso António José Seguro tivesse estado a bordo do desaparecido vôo da Malaysia Airlines, o PS estaria impotente, inteiramente manietado, impedido de escolher um novo Secretário Geral antes do fim do mandato do actual detentor do cargo. Não ouçamos essas vozes maliciosas. Ouçamos antes a bem-intencionada, a conscienciosa, a insuspeita Maria de Belém, que põe a integridade do PS e das suas instituições acima de tudo.
Quanto aos partidários de António Costa, ou mesmo aqueles que, não o sendo, prefeririam que se realizassem eleições directas antecipadas e um congresso extraordinário, só lhes resta mudar as suas reivindicações. Não faz sentido repetirem as palavras de ordem: “Tozé, marca lá o congresso”. O Tozé não pode, não por mero apego ao poder, mas porque só o poderia fazer abdicando do cargo para que foi democraticamente eleito, e deixando, consequentemente, o seu bem-amado partido sem timoneiro. Agora eles só podem dizer, maldosamente, “Tozé, demite-te”. Só esperemos é que não ocorra a nenhum deles dizer o impensável: “Tozé, vai-te mas é matar”.