Quarta-feira, 9 de Julho de 2014

 

"Reek, Reek, it rhymes with weak."

 

 

A realidade é repetitiva. Há um comportamento que se tem vindo a repetir dia após dia nos últimos três anos, a ponto de constituir um padrão absolutamente previsível.

 

São-nos impostas medidas dolorosas, mas de eficácia duvidosa, até mesmo contraproducente. Os ganhos, se existem, são parcos e em nada compensam os sacrifícios. E, no entanto, o Governo alegra-se, o Governo rejubila, o Governo canta Ossana e Gloria in Germania Angelae! ! E, além disso, rejeita iniciativas que poderiam aliviar o sofrimento do país.

 

Os leitores certamente partilharão a minha perplexidade. Como explicar semelhante comportamento?

 

Os mais cínicos de entre vós talvez se atrevam a sugerir que o Governo trabalha não para o bem do país, em nome de uma qualquer interpretação legítima e razoável do que possa ser o interesse nacional, mas sim em nome de uns quaisquer interesses mais ou menos obscuros, que, neste caso, estão em completa desarmonia com o que se desejaria para o país. Os leitores mais sintonizados com o discurso do “politiquês” poderiam até dizer que existe neste momento um consenso alargado quanto ao que constitui o interesse nacional e o que é preciso fazer para o realizar, mas que o Governo, com os seus poucos aliados, se coloca voluntaria e conscientemente fora desse consenso – aliás, contra esse consenso.

 

Esta interpretação pode e deve ser rejeitada à partida. É impensável que possa haver um Governo europeu, democrático, civilizado – diria até mesmo simplesmente decente – que se ponha propositadamente contra o interesse da nação que governa. É mais do que impensável – é absolutamente monstruoso. Pensamentos desta natureza não são dignos de gente de bem, e entretê-los por mais que um minuto ofende não só o Governo ele mesmo como os próprios que o articulam. Podemos seguramente partir deste princípio que é incontroverso entre gente de bem, entre as pessoas respeitáveis e inteligentes: o Governo e os seus aliados só querem o nosso bem.

 

Mas então como explicar esta ausência de sintonia entre o que o Governo faz e os seus próprios intentos? Será pura incompetência, como sugerem alguns? Estaremos a falar de um Governo que trabalha para o nosso bem e se esforça vigorosamente para levantar hoje de novo o esplendor de Portugal – mas que se atrapalha, tropeça nos próprios pés, e que não consegue senão ir cambaleando pelas ruas acima, estatelando-se ora contra esta ora contra aquela parede? Teremos, portanto, um Governo cheio de boas intenções, mas trapalhão? Um Governo que afunda aquilo que quer salvar? A ideia de um Governo trapalhão é engraçada e até tem o seu encanto. Faz lembrar talvez umas daquelas personagens femininas de comédia romântica, que vai avançando de pequena asneira em pequeno embaraço até aos braços fortes, musculados e protectores do homem da sua vida.

 

E é precisamente este o problema. Onde está o nosso galã, o nosso herói, o nosso salvador? Que é feito do homem alto, elegante, musculado que, no fim de tanta tropelia, nos pegaria ao colo para nos levar para a cama e para a felicidade? A ingenuidade romântica do nosso Governo leva-o a pensar ter há anos encontrado este sonho de amante no Governo da Alemanha, liderado pela competentíssima Angela Merkel, nas instituições internacionais nossas credoras, na liderança da União Europeia.

 

E, no entanto, este amante bate-nos, maltrata-nos, humilha-nos quase diariamente, difama-nos publicamente. Portugal é preguiçoso, Portugal não trabalha, Portugal vive acima das suas possibilidades. Portugal não merece ter coisas boas e bonitas. Portugal é irresponsável, criminosamente pródigo, um perdulário, potencialmente um vigarista. Portugal não é capaz de tomar conta de si mesmo – e por isso precisa de ser orientado, reeducado, governado pelo braço forte do seu amante. Portugal tem de mudar o seu modo de ser, os seus hábitos, as suas convicções, as suas tradições. Portugal não é bom o suficiente para estar na companhia dos seus parceiros europeus. Portugal é uma vergonha e um risco para a Europa. Isto diz a Portugal o amante que o Governo escolheu. E Portugal – ou pelo menos o Governo – acredita, segue, obedece.

 

Portugal faz o que lhe mandam, submissamente, sem se queixar, crendo sem dúvida ou hesitação que tudo o que o seu amante lhe impõe é, na realidade, para seu próprio bem. Portugal entrega-se, rende-se aos encantos dominadores do seu amante. Não importa que o amante humilhe Portugal, que lhe bata, que o faça sofrer – porque o amante é perfeito, o amante é sábio e, sobretudo, o amante ama Portugal a tal ponto que faz tudo para o ajudar, para o salvar mesmo de si próprio. Portugal sabe que não presta e que é só na sua entrega total ao amante que poderá encontrar para si algum valor, redimir-se dos seus erros, limpar as suas culpas e dar sentido à sua existência.

 

Isto seria belo se não fosse tão trágico. Substituamos Portugal por uma qualquer mulher ou homem numa relação desta natureza, e não haverá quem não se sinta cheio de pena – e muitos de nós até se sentiriam tentados em chamar a polícia. Portugal está numa relação abusiva e o Governo, a quem, repito, não podemos nunca imputar má-vontade contra o país por cujos interesses tem o dever de lutar, não faz nada para o salvar; pelo contrário, parece motivado a mantê-lo lá, refém, impotente nas mãos do agressor.

 

Dirão alguns que este retrato é distorcido ou exagerado. Dirão até que o modo como uso esta metáfora não dá conta da complexidade da relação entre Portugal e os seus credores, perdão, salvadores. Dirão que sim, que a ajuda que nos prestam dói e continua a doer e doerá durante muito tempo; que por vezes parece que estão a abusar de nós e não a resgatar-nos. Mas, acrescentarão, tudo isto não só é para nosso bem, como daqui nasce uma relação mais profunda, de uma maior confiança. É nesta dor que nos redimimos, mas, sobretudo, é nesta dor que nos conhecemos a nós mesmos e que adquirimos os meios e os instrumentos para construirmos um novo Portugal – um Portugal melhor, mais confiante, menos indefeso. Dirão que esta relação amorosa não é abusiva. É antes sim uma relação sado-masoquista, no qual Portugal é o parceiro submisso, mas no sentido bom do termo: uma relação voluntária, baseada na confiança e (assim o afirmam os seguidores deste estilo de vida) no amor – um amor invulgar, raro, extraordinário, mas mesmo assim verdadeiro, autêntico e, nesse sentido, tanto mais admirável.

 

Enganam-se os que assim pensam. A metáfora que usam coxeia tão ostensivamente que se deixa apanhar quase tão rapidamente quanto o proverbial mentiroso. É que uma relação tal como descrevem é toda ela voluntária. E a verdade é que, de cada vez que alguém pensa que Portugal deve ou deixar o seu amante ou somente fazer algo para mudar os termos da relação, somos de imediato relembrados de quão medonhas seriam as consequências. Uma tal relação é baseada na confiança mútua, e tanto o parceiro submisso quanto o dominador ficam expostos, se entregam um ao outro. Mas Portugal é sempre alvo da mais profunda desconfiança: de cada vez que faz algo que não corresponde exactamente às expectativas, é alvo de recriminações e obrigado a corrigir o seu comportamento. Por último, as relações sado-masoquistas usam palavras de segurança, isto é, palavras que sinalizam ao parceiro que é melhor parar, que se ultrapassou um limite. Mas para o amante de Portugal, não parece haver limites. Se as medidas propostas violam a Constituição, que se ignore, que se mude a Constituição. Se o que Portugal é obrigado a fazer dói demais, faz sofrer demasiada gente, Portugal que aguente. Uma relação desta natureza deveria poder parar a qualquer momento, a pedido. Mas Portugal não tem o poder de mandar parar. Está inteiramente à mercê do seu amante.

 

Portugal é, portanto, vítima de violência doméstica. E, como é costume nestes casos, é ferido não só no corpo, mas também na alma. Racionaliza o que lhe acontece atribuindo a si mesmo culpas imaginárias, adoptando como seu o discurso e o argumentário de quem lhe quer e está a fazer mal. “Se me controla – pensa – é porque me quer bem; se me domina é porque me ama; só me pondo inteiramente nas suas mãos é que consigo retribuir-lhe o amor que me tem.”

 

É este género de relação que o Governo de Portugal estabeleceu com a potência hegemónica europeia; é neste género de relação que o Governo quer manter Portugal. Portugal, na pessoa do seu Governo, colabora activamente na sua própria tortura e na sua própria destruição. O Governo não o faz, insisto, porque descure, ignore ou despreze os seus deveres enquanto Governo. Pelo contrário, fá-lo na convicção de que é assim que Portugal deve agir para o seu próprio bem. O Governo, portanto, não merece que o odiemos; merece que tenhamos pena dele. Não merece que lutemos contra ele; precisa da nossa ajuda. A única maneira de o Governo, e Portugal, se salvar da relação abusiva em que se encontra aprisionado é voltando a ganhar um pouco de auto-estima, de respeito próprio, enfim, de coragem. Mas para isso é preciso que primeiro adquira um pouco de auto-conhecimento e auto-compreensão: que entenda uma vez mais que Portugal não é um país sem préstimo, mas que tem valor, e que merece ser amado e ajudado por aquilo mesmo que é – sem exigências extremas, sem estar submetido a padrões impossíveis e a regras auto-destrutivas.

 

O Governo é, portanto, inocente nos dois sentidos da palavra. Está livre de qualquer culpa, em virtude da sua própria ingenuidade. Foi esta mesma ingenuidade que fez que se entregasse a si e a Portugal a alguém que nos maltrata – e acabasse por ir colaborando nesses mesmos maus tratos.

 

Ou então fá-lo consciente e propositadamente, para benefício de outros que não aqueles que tem o dever de proteger.

 

Mas não. Isso seria demasiado obsceno para ser verdade.



publicado por Fábio Serranito às 18:23 | link do post | comentar

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